sábado, 27 de novembro de 2010

corpo de cordas

Caminhava a cerca de cinquenta metros quando o som dos acordes penetrou o meu ambiente sonoro. Sabia exactamente que dedos faziam aquelas cordas vibrar, que corpo se encontrava alheado do mundo e fazia correr o sangue através da pauta musical.

Se à matéria fosse injectada vida, também aquela guitarra teria estórias para contar. Estórias envolvidas de excitação ainda a fervilhar entre as palavras, com o prazer a pulsar em cada momento e a ansiedade cosida ao corpo, a desprender-se em cada passo dado antes de entrar no palco. A sua voz descolava-se do silêncio apenas em alguns intervalos do reportório, para deixar a actuação entregue aos diálogos que se soltavam das cordas. Quase não sentia necessidade de aplausos. Era nos rostos paralisados num sorriso, onde as lágrimas banhavam os olhos, que encontrava a maior recompensa. A fama matemática, que faz dos números a satisfação do artista, em nada lhe interessava.

Ainda hoje permite que o seu talento seja transportado para outros dedos. Horas a fio, com a paciência a servir de base de trabalho, transmite cada um dos seus conhecimentos a quem os deseje carregar. E vários foram os nomes que se sentaram frente ao artista, sedentos de música. É também a única oportunidade que têm actualmente de assistir àquilo que ele produz musicalmente. Abandonou os palcos para se dedicar exclusivamente ao que diz ser o mais importante na sua vida, a liberdade. Desprendeu-se, assim, do receio de encontrar com o avançar da idade rostos insaciados entre o público.

A sua rua transformou-se num imenso palco. Há um disco humano em constante loop, fazendo da estrada uma imensa sala de concertos. Aqui já ninguém suporta o silêncio, nem o silêncio se consegue impor. Quem o irá substituir quando a morte o vier buscar?

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