quinta-feira, 29 de novembro de 2012

ontem


Ando inquieta. Como esses que percorrem corredores para lá e para cá. Ando inquieta. Às vezes ainda penso nele. Por vezes ainda faz sentido repensarmo-nos, imaginarmo-nos. Às vezes ainda fazemos sentido. Devo andar meia tresloucada, desvairada para voltar assim atrás no tempo, nas memórias, nas emoções, na vida. As palavras desembrulharam-se todas de uma só vez. Volto a vê-lo e a ouvi-lo como se a vida acontecesse de novo. 

Ele a andar pela casa cheio de palavras na boca. Fala do sofá e de como as almofadas o farão novo. Olha para uma secretária que não existe e imagina que dali, da cadeira que um dia existirá, me observará, deitada no sofá. 

- Quando estiver calor podemos colocar uma mesa na varanda e jantar lá. Aqui ainda se sente o cheiro a mar. Adoras o mar, não é? Do nosso quarto vê-se uma nesga da praia, as ondas a rebentar lá ao fundo, um pescador ou outro, de pé como um castiçal durante horas, à espera que o mar o sirva. 

Às vezes ainda fazemos sentido.

Eu a corar de amor, perdida ou embalada, sei lá, nas palavras, perdida nas respostas que lhe deveria ter dado naquele momento, sem esperar uma outra ocasião, uma melhor ocasião, a ocasião perfeita. 

Os primeiros cheiros a espalharem-se pela casa, os sonhos alojados no chão. O cheiro a casa que nos pertence. As memórias envolvem-nos de tal forma que parece Verão no nosso coração. A vida fica-nos oca. Anos depois tudo nos parece oco e desvairado de sentido. E, no entanto, ando com esta incerteza colada à pele e não sei que destino lhe dê. É, às vezes ainda fazemos sentido. No sonho tudo faz sentido.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Maria ou simplesmente Mia


Não trazemos para as linhas das folhas as histórias daqueles que nos tocam. Não o fazemos por reconhecermos que os anos e momentos que as revestem nos infligem de impotência, por percebermos que somos carne e nada força quando o presente desses se transformou numa invontade, invida, intudo. E inventamos palavras porque na verdade nenhuma palavra descreve aquilo em que a vida delas se transformou. Foi isso, apenas isso, esse vazio arrebatador que nos afunila, que senti no momento em que voltei a ver a Maria.

A história da Maria, ou Mia como sempre carinhosamente lhe chamamos, há-de perder-se no tempo. Porque a história das mulheres comuns pouco ou nada interessa à História. Desvanecem-se nas bocas e no tempo e com elas acaba por desaparecer a personagem principal. Mas é a história das mulheres comuns que carrega dureza e é da história das mulheres comuns de que é feita a nossa história.

Dura na atitude, mole nos sentimentos, a Mia amou, desde que a minha memória a carrega, um homem que nunca lhe pertenceu mas que sempre caminhou imaginariamente a seu lado, apesar de casada com um outro homem que escondia a desilusão de o saber. Lembro-me de a ver pela casa, de a sentir como uma segunda mãe, de a saber nossa como foi dos cinco homens que se transformaram em filhos. Lembro-me dos domingos de correria matinal, de passo apressado para a missa, do sabor dos seus rissois   e dos beijos repenicados. Eu lembro-me. Ela não. Da Mia de outrora hoje não resta nada. A mercearia, a casa, o grupo coral e tudo o resto memórias que nem memórias são. Para a Mia a quem não resta nada, o tempo que sempre lhe pareceu demasiado curto hoje é longo e cheio de nada.

Havia passado muito tempo, anos porventura, desde que a havia visto. Não por falta de tempo. Não por distância. Mas por medo. Receei durante muito tempo o que o tempo lhe poderia ter causado. E quando decidi que era tempo, vê-la foi como deixar de ser. No momento em que lhe encontrei o olhar reconheci o que sempre soube, que não lhe resta nada a não ser a espera vazia de memórias, vazia de palavras, vazia de movimento. Uma não existência já. 

Podem retirar-nos muito do que construímos, das coisas que possuímos, as pessoas que amamos. Mas havemos de manter sempre as memórias daquela que é a nossa história. É esse património que deveria ficar obrigatoriamente connosco até ao dia em que não mais estivéssemos. Mas no caso da Maria as recordações perderam-se para dentro de si, para um desses labirintos desvendáveis.  Eu tenho esperança que ela seja das últimas a quem as memórias se escaparam para o desconhecido. É apenas uma esperança, porque esperança é nesta história a única coisa que me é permitida. 

quinta-feira, 24 de maio de 2012

desprovido de título

Não consigo escrever. Deparo-me com esta folha branca e nada mais há do que o silêncio da caneta sob o papel. Este pesado e avassalador silêncio do vazio. Escrevo e as palavras parecem ocas, desprovidas de sentido, as linhas soltas, desconectadas, labirintos semânticos.

Culpei o tempo, culpei a chuva, culpei os dias cinzentos e frios. O sol voltou, as palavras não. A verdade é que as estórias são fortes, significativas e intensas no plano real, mas perdem significação no papel. Não me perguntem porquê. Há muito tempo que as respostas parecem ter ficado petrificadas e encerradas num túmulo. Os dias são agora uma série sucessiva de questões perdidas de refutação.

Vejo-me neste estado e sinto-me presa a um carrossel que apenas gira e gira em torno de si quando realmente necessito de uma montanha russa vertiginosa que me provoque arritmia e faça o meu estômago parecer cair no vácuo.

Confesso que não há maior impotência do que esta. A percepção hoje não poderia ser mais exageradamente certa. Porque não sabendo como acordar a inspiração, vivo presa à impressão de ser um corpo em queda livre sabendo plenamente o que vai encontrar, o chão. 

terça-feira, 27 de março de 2012

doce fim

Eu não tenho medo da morte. Houve um tempo em que a palavra – morte - era impronunciável, parecia maior que a minha boca, ficava presa na garganta, teimava em atemorizar-me o cérebro. Deixei esse tempo no passado, porque nunca, como neste tempo presente a morte me parece tão suave, tão intensa, tão apetecível.  Eu sei que não entenderão. Eu sei que todos os argumentos que tenha naturalmente construído pareçam vazios, egoístas, mesquinhos. Mas a verdade é que quando estamos presos a um corpo morto que deixou de se sentir vivo, a morte aparenta ser uma segunda oportunidade.

Tentei por duas vezes. E por duas vezes falhei. Fizeram-me falhar. E fizeram-no não porque me amam, mas porque têm medo da morte. Têm medo desse vazio que se desconhece, onde nos sentimos perder e que não sabemos tapar. Fizeram-no porque acreditados que o amor que sentem a isso os obriga vêem camuflados o seu egoísmo de que lhes doa não mais me ter.

Mas sabem que vou continuar a tentar. E no fundo, nesse fundo que se tenta contradizer, afogar, reconhecem que essa é a única saída. Olham para os meus olhos vazios e percebem que só a ideia da morte os enche de vida. E digo-o com um sorriso. Porque dizendo-o sinto toda a liberdade inerente a cada uma dessas palavras, ao escape que significam, ao alívio que provocam. E, no entanto, sinto-me já cansada de o dizer. Olho para os meus filhos e digo-lhes sem nada dizer que só isso nos salvará. Eles entendem, mas não querem entender.

Passaram muitos meses desde a minha última tentativa e, por sorte minha, acreditam que voltei a ter essa vontade que não conheço, jamais conheci, de viver. Por minha sorte permitem-me pela primeira vez tomar banho sozinha. Disse-lhes que ia encher a banheira. Disse-lhes que ia tomar um banho relaxante. Disse-lhes que ia encher a banheira de espuma. Só não lhes disse que não voltaria a respirar depois desse banho. Vou deixar a cabeça mergulhar suavemente e deixar que essa sensação de liberdade me atinja lentamente até me saber totalmente livre. Eles não entendem. Não vão entender. Talvez um dia entendam.

quinta-feira, 8 de março de 2012

sou mulher


Sou mulher. E como todas as mulheres acredito que o cromossoma X nos torna especiais. E não o digo de ar presunçoso, vaidoso e altivo. Digo-o porque o sinto debaixo da pele. Sou especial porque sinto de uma outra forma. Dessa forma que dificilmente se sabe explicar, mas se reconhece ser diferente na intensidade, no tamanho, na dor, no calor, na essência. Sou feita dessa matéria de delicadeza e sensualidade que me contorna os contornos, que me torna apetecível, que me torna suavemente mulher.

Cresci sem que ninguém soubesse explicar o que é isto de se ser mulher, percebendo apenas que sinto mais, me prendo mais, me magoo mais, me questiono mais sobre o meu eu, me sinto complexa nesta complexidade de que sou feita. Sou mulher e como todas as mulheres sonho com disparates, desejo o mais profundo de profundo que possa haver no sentimento, enrolo-me em ilusões e embato contra a realidade de rosto erguido. Sou mulher e por isso não tenho medo de chorar ou de amar, mas engulo cada uma das lágrimas para que acreditem que há mais dureza neste corpo do que numa mulher poderia haver.

Embelezo-me consciente que a minha beleza desliza pelas linhas do meu corpo, mas sei que a minha real força se exerce através da inteligência, da subtileza da palavra certa. Sou mulher dentro dos meus vestidos, da minha camisa, das minhas calças, do alto dos meus saltos ou descalça. Sou mulher porque caminho a mergulhar em sonhos e a acreditar que os sonhos e a constante insatisfação são o único alimento que necessito para alinhavar cada um dos dias. Sou mulher sabendo que a minha firmeza e o meu orgulho estão no meu género, que a vontade me corre nas veias para expulsar para o exterior que a suavidade da minha pele se reveste de perseverança. Sou mulher com o meu sexto sentido à flor da pele e carrego-o com a delicadeza que um sentido que só a nós nos pertence exige. Sou mulher podendo ser mãe, querendo ser mãe, sabendo que ser mãe me dá um poder perene. Sou mulher que se faz cada vez mais mulher, desejando ser ainda mais mulher em cada atitude, em cada passo, em cada olhar. Sou mulher e nada mais posso ser ou quero ser senão mulher porque viver neste corpo de mulher me faz acreditar e afirmar que o cromossoma X faz de mim um ser especial.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

ela

Vou acreditar que é apenas uma fantasia. Vou acreditar porque acreditar é a única justificação que consigo dar-me para que o faça. Parece-me uma loucura. É essa a única certeza que tenho, a de que estou louca ou pareço estar louca para continuar sem que encontre qualquer fundamentação para o ter feito, para o querer continuar a fazer. Há algo que me prende. Como se me colasse àquele espaço, àquele momento e não tivesse a mínima vontade, não fizesse o mínimo esforço de recuar, de sair, de parar. Aconteceu por acaso. Um mero acaso que não sei explicar. Surgiu apenas. Deixei que surgisse, deixei que se prolongasse, deixei que acontecesse.  

Tudo é diferente. Inexplicavelmente e sedutoramente diferente. O toque é diferente, os contornos são diferentes. Tudo ali é suave. Os lábios, a pele, os movimentos, a linha do corpo, o deleite dos seios, a forma como os dedos descem pelo peito, como se demoram, como quase me tocam a alma. Eu deveria sentir falta de algo, de tudo. Deveria sentir falta da rudeza, da masculinidade, da firmeza. Mas senti-a ultrapassada por um prazer que não sei explicar, que parecia dobrar, que se enrolava entre os contornos da língua. Um desejo inexplicável a atravessar-me e eu perdida nessa sensualidade de corpo de mulher. Eu não sei que atração é esta pelo desconhecido que, na verdade, é o meu corpo em duplicado. Porque razão me sufoca esse cheiro de flor no pescoço frágil dela. Porque razão me perco entre os cabelos longos dela. Porque razão me sinto baralhada e simultaneamente plena nas suas mãos. Consome-me esta estranheza, esta ausência de necessidade do homem, do corpo masculino, esta vontade dela, do corpo feminino. 

Eu não tenho de perceber tudo. Eu não preciso ter todas as respostas. Eu tenho apenas de as querer procurar.  Tenho apenas de ouvir o que o meu corpo tem para me dizer. Um passo a seguir ao outro. A resposta há-de chegar.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

teia da (ir)racionalidade

Uso a palavra escrita porque a cobardia me impede de to dizer presentemente. Escolhi cada uma das palavras, de forma emocionalmente perspicaz até que o vazio do tudo expulsar rompesse dentro de mim. Esperei demasiado tempo. Esperei demasiado naquele sofá onde um dia nos deitamos os dois, onde um dia, dias, meses me fizeste acreditar que ficarias. E hoje, neste mesmo sofá onde te escrevo, confesso que apenas desejo que me ames. Não quero que gostes apenas. Estou cansada que gostem apenas. Quero que cada uma das letras da palavra 'amo-te' te encham a boca, que quase expludam dentro de ti, que te obriguem a pronunciá-las para que não morras. Quero que me ames para que te possa usar como um livro desses que se consomem ferozmente para depois se abandonar numa estante.

Anseio ver-te infeliz nesse teu desejo de me ter para que te ofereça o peito arrancando-te a alma enquanto sorrio. Quero ter poder sobre ti, de ti, de te cortar o peito ao mesmo tempo que me quero prender nesses braços de homem, pôr a nu as tuas fraquezas enquanto faço uso desse teu corpo másculo. Quero esse amor oportunista que apenas retira e pouco ou nada dá, que não deixa marca, tece memórias leves e não pede retorno. Sim, quero ostentar-te a meu lado enquanto amante preso à sua paixão, fingindo amar-te, fazendo-te crer nesse fingimento absurdo de namoro tolo enquanto te abro suavemente uma ferida que te mostra os ossos. Alguém te a há-de lamber. Mas serão precisos meses. Sim, precisarás de meses, digo-te entre dentes com este sorriso cínico. Precisarás desse tempo que parece duplicar na sua demora até que te deixe de correr no sangue. 

E rastejarás nessa tua masculinidade perdida, desejando voltar a este sofá. Quero que me ames, porque amando-me serás fraco, porque amando-me eu esquecer-te-ei, porque amando-me este sofá deixará de ser grande demais, porque amando-me sentir-me-ei livre na tua dor. Quero que me ames. 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

chamo-lhe amor

Sou um menino. Ainda hoje sou um menino, com os meus 70 anos, quando te olho deitada na cama, sentada no sofá, enquanto olhas pela janela e me dás a mão. Sim, sou um menino. Continuo a ser um menino, continuo a amar-te como um menino, com esse amor ingénuo preso à paixão.

Deixo os meus dedos engelhados de velhice escorrerem pela tua cara e vejo-te ainda essa mulher colada à juventude que me encheu de si, essa mulher de sorriso preso à timidez, essa mulher que na sua fragilidade do tempo se transformou nas minhas mãos, nos meus braços, nas minhas pernas e quantas vezes na minha voz. Muitas vezes acreditei que te perderia, que te veria partir, nessa tua beleza que não se consome. Ficaste. E chegou o filho, os filhos, o neto, que haveria mais tarde de ser plural. Muitas vezes fiquei simplesmente parado a olhar-vos, no meu silêncio de regozijo porque, por vezes, as palavras atrapalham a atenção, desfocam o simples deleite da felicidade.

Trouxeste o relógio para que me sentisse em casa. O relógio cujo ponteiro não se cala chegou às 20 horas. Passaram dois meses desde que cheguei a esta cama de hospital e sei que será hoje. É hoje que parto. Passaram dois meses desde que te sentaste nessa cadeira desconfortável, dedicando cada um dos minutos do teu dia a mim, esquecendo-te de ti, dando a tua vida por mim, querendo fazê-lo, sabendo não poder fazê-lo. São 20 horas, vou partir e apenas consigo pronunciar um obrigado, repetido vezes sem conta. Porque agradecendo agradeço amar-te, porque dizendo obrigado te digo amo-te, porque dizendo obrigado, uma e outra vez, te digo que és todo o meu pedaço, todo o eu nesse teu corpo. Porque dizendo obrigado te agradeço as respirações ofegantes e as quase silenciosas de cada um dos nossos momentos. Porque, enfim, agradecendo-te saberás que somente por ti terei vivido, saberás que me deste vida onde outros vêem morte. E se isto não é amor, se isto não é o tão aclamado amor, então não sei que nobre sentimento é este que nos reveste a pele, então não sei dizer que doçura é esta que trago presa na alma quando me dás as mãos, me dás um obrigada de retorno e sorris, sorris sabendo que vou partir.  

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

cura de ti

O meu desejo é estranho. O meu desejo é estranho sem que perceba porque o é. O meu desejo é um desses desejos que se consome enquanto te tem e que depois anseia ter-te longe, arrastar-te porta fora, atirar-te da ponte, saber-te morto, saber-se morto contigo. O meu desejo é estranho e desconhece porque razão tem necessidade de ti quando a quando, porque razão gostaria de te ter a seu lado quando o dia morre na linha do horizonte e as cores nos entontecem na sua intensidade para logo desvanecerem nesse cinzento de morte do dia. O meu desejo é estranho por encontrar em ti uma solução inútil para eliminar um outro corpo que não o teu. E por isso este meu corpo se perde no teu corpo robusto de homem, se envolve nos teus braços fortes, abrigo temporário. O meu desejo é estranho por acreditar que o não desejo de qualquer retorno faz do teu toque a percentagem de toque necessária que um corpo possa precisar para manter-se vivo.

Sim, o meu desejo é estranho. É estranho no momento em que nos deitamos frente a frente e entrelaçamos os dedos para não nos perdermos nos lençóis, fazendo-me acreditar que aquele momento é suficiente, que o mundo lá fora desaparece e o leva a ele com ele nesse abismo, que os neurónios do coração o eliminam quando te olho e me engano dizendo que és a solução. O meu desejo é estranho ao acreditar, fazendo-me acreditar, que tu és apenas a ponte, essa suave ponte de emoções leves, intensas e efémeras que me levará a um outro corpo de pele despida da dor, da perca, do abandono. Dói-me sabes. Dói-me este desejo estranho que me veste uma outra que não eu, uma outra que acredita que a cura de ti é um outro, uma outra que me leva a negar que um erro não se corrige com outro erro.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

a leveza de te não ter


Assim que entrei na sala e te vi sentado à mesa enquanto convidado desconhecido soube que eras tu perante esse descontrolo que tentamos disfarçar.  Soube-o pelo teu sorriso. Soube-o através dos teus olhos. Soube-o pela forma como me olhaste enquanto dizias o teu nome.

Saber-te comprometido deu-me uma liberdade levemente castradora. Saber-te comprometido aliviou-me o peito, por julgar que a possibilidade de me apaixonar por ti fora cortada na sua raíz, antes mesmo que ela se aventurasse em romper peito fora. E senti-me livre nessa liberdade de poder apreciar cada um dos teus traços, cada linha dos teus lábios, nessa admiração tímida e quase camuflada, de quem não tem receio que à paixão seja dada a hipótese de respirar.


Esse alívio de se estar não sentindo. Esse sentir que nos leva a sentir o peito parecer estalar de calor, os olhos queimar de desejo, a ânsia do toque apoderar-se das mãos. Quanta liberdade há no simples deleite de quem faz do outro simples matéria observatória, matéria analisada ao microscópio da alma, doce tentação suavemente proibida. 


Dar-te-ia tudo. Mas dar-te-ei nada. Não preciso amar-te. Não quero amar-te. Prefiro ficar deste lado da mesa, frente ao teu corpo, com esses leves roçar de pés a que pedimos desculpa, tecendo sorrisos enquanto falas, delineando detalhadamente cada momento na imaginação, dando asas ao proibido, à sua concretização numa escala que o real não permite, entre essas linhas que jamais ousarei contar.

Não nos teremos. Desejar-nos-emos eternamente. E a nossa pele será sempre fogo quando nos encontrarmos.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

fim não proferido

Moviamo-nos pelo desejo. Esse desejo que parece lume, que nos parece incendiar, que nos parece queimar a carne. Movias-te pelo desejo. Unicamente pelo desejo, pelo fervor do apelo do sexo. Eu, movida pelo desejo da paixão que se transformara já em amor prendi-te os lábios assim que me abriste a porta, deixando que me despisses à velocidade do teu comando. Com a tua mão presa aos seios a deslizar pela pele macia do meu corpo e a respiração entrecortada a abafar o silêncio aprisionado no quarto sentia o prazer explodir-te no peito.

Hoje dou-te mais. Dou-te uma outra mulher, que nunca se sentiu tão eu, que te sussurra ao ouvido o que sabe quereres ouvir, uma mulher que te engole a respiração. Hoje dou-te mais, porque este mais será o nada de mim para ti amanhã. Amanhã não estarei cá, nem no dia seguinte, nem no próximo. Saberás tu que esta é a última vez? Perceberás pela forma como te toco, como te olho, como te esmago contra mim que este é o fim, que não te procurarei mais, que não me voltarei a deitar nos teus lençóis encharcados de ti, do teu cheiro, que não me enroscarás nos teus braços pela noite dentro?

O tempo esgotou-se. E com o tempo esgotado esgotou-se a esperança de te saber apenas meu. Os homens deveriam saber ler-nos. Deveriam saber ler-nos sem necessidade de palavra proferida. Se ele me soubesse ler saberia que aquela seria a última vez. Se ele me soubesse ler saberia que eu não queria que aquele momento tivesse título de fim. Se ele me soubesse ler não me teria deixado sair daquele quarto.