segunda-feira, 28 de março de 2011

boneca de coração farpado

Não é em mim que toca. É numa espécie de segunda pele, feita de cimento, que reveste cada parcela de mim. Cobre estes meus ossos, estas veias, estes órgãos, esta alma, impedindo que a sua saliva se misture com a minha, impedindo que os seus dedos deixem impressões digitais nos meus seios, nas minhas coxas, impedindo, sobretudo, que o meu ritmo cardíaco dispare, se deixe embalar pelos movimentos destes corpos, deitados em leiçóis velhos, por vezes despojados em estofos com cheiro a cigarro, colónia barata de quem pouca necessidade tem de parecer perfeito para me encontrar.

Lanço-me de novo à rua, exibindo sob as luzes foscas uma saia curta de toque macio, a blusa decotada de cor arrojada, estes longos cabelos libertos ao sabor da velocidade do vento. Passeio este corpo, que não o é, carregado em tacões de tamanho consideravelmente adaptado aos desejos masculinos.

As palavras que rompem das janelas dos carros deixaram de ser balas disparadas contra esta pele. Transformaram-se em vozes abafadas, lançando palavras rompidas pelo tempo. E transformaram o que resta de mim numa boneca indefinida, moldada a partir de esboços de perfeição, que perdeu o lugar na primeira prateleira.

Continuo à espera. À espera que o alcatrão deixe de ser o quarto, a sala, a casa, quando a cidade adormece. À espera que um dia este coração estagnado, gasto, receoso, sacuda o pó, erga a cabeça, faça bater as asas. À espera que esta espera não morra nas mãos da conformação.

Sim, sou prostituta. Sim, resignei-me. E então? Não acabamos todos por, em certo período das nossas vidas, nos resignar. Afinal, sou apenas mais uma. Na verdade, nada em mim é diferente.

quinta-feira, 10 de março de 2011

dependência

Primeiro a perna esquerda. Agora a direita. Depois aquela força que parece vinda das entranhas para erguer o tronco, até conseguir aquela elevação necessária para que as velhas e frágeis mãos dela me possam suster. Hoje veste-me uma camisola de lã, sem nunca demonstrar o quão difícil é a tarefa. Os músculos prenderam-me os braços, o tempo fará com que todo o corpo se transforme numa estátua. Sei que o diagnóstico não falhará. Conseguir afastar os membros superiores 10 centímetros do corpo é uma vitória, mas as vitórias tendem a ver a sua importância fragilizada.

Tenho as palavras coladas nas paredes da garganta. Moram lá ainda antes do branco ter-se apoderado dos meus cabelos, antes das cataratas se terem apropriado dos meus olhos, de terem deturpado o meu olhar, antes mesmo da doença de Parkinson ter chegado ao corpo dela.

15 minutos. 15 minutos é o tempo necessário para abandonar o colchão e colocar este homem magro que sou na cadeira de rodas. A espinha que parece quebrar, a pele que quase rompe, as chagas que se abrem, o coração prestes a rachar. Só o sorriso dela atenua a dor. Aquele suave e ténue sorriso que a velhice lhe ofereceu.

O meu mundo é esta casa. É esta casa e o que vejo das suas janelas. É o som emanado da boca dela e o toque das suas mãos na minha face, na minha cabeça, no meu peito. É a chuva que bate nos portais e o sol reflectido na minha pele. É o olhar dela a respirar amor, a ausência de pena quando coloca o cobertor sob as minhas pernas e me arrasta até à sala. O meu mundo parece uma caixa feita de tijolos, comandado pelo som das rodas enferrujadas da cadeira. O meu mundo é isto: as suas mãos nas minhas, as minhas mãos nas dela. Somos velhos, estamos sós. Não estamos sós porque nos temos.