segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O(s) primeiro(os) amor(es)

Fotografia: http://arianefaciloli.tumblr.com

Tinha um corpo pequeno. Um corpo tão pequeno quão pequeno deve ser o corpo de uma criança de 4 anos. Dentro desse corpo pequeno, também o coração era pequeno, um coração proporcional a si, um coração do tamanho certo. Mas chegou o tempo em que esse coração se tornou maior do que o seu corpo, como se rompesse a pele e quisesse correr estrada fora, fugir, sabe-se lá. Queria faze-lo porque não percebia que sentimento era esse que o queria fazer explodir. Era um sentimento demasiado grande para um corpo tão pequeno. Mas ela conseguiu suportá-lo, tomou-lhe prazer, percebeu que de repente ela era outra, era um sorriso enorme com perninhas a correr no recreio da escola, a esconder o olhar dele de tal timidez ele lhe provocava. Nesse tempo existiam cartas, as primeiras palavras que se aprendiam eram escritas numa folha em que o verdadeiro significado não estava no que dizia mas no que estava para além da palavra, isso que ainda não sabiam escrever.

Sabiam lá o que era isso do amor. Diziam que eles eram namorados e eles sentiam calor nessa palavra, acreditavam que sim, era isso que tinham no peito, fazia sentido dizerem-se namorados, darem as mãos, fazerem dos cenários do jardim de infância uma casa ilusória, ansiar pelo dia seguinte e o dia seguinte e o não desejo de fins-de-semana porque não se viam. O primeiro amor é diferente porque não conhecemos um outro, não existiu nenhum outro e, por isso, parece eterno. Dentro dela tinha a impressão de que esse amor jamais morreria e que se um dia essa pessoa já não corresse com ela no recreio ela continuaria lá, porque mesmo não estando ela continua a correr dentro dela, correrá até ao último dos seus dias.

O primeiro amor daquele pequeno corpo acompanhou-a ao longo de longos 6 anos, até que o 4º ano chegasse, o corpo fosse já maior, os sentimentos parecessem mais confusos, os momentos vazios de qualquer coisa, até que os objectivos fossem outros e os sonhos também, até que o amor se tornasse complexo, se esbatesse um pouco, mantendo-se no entanto grande dentro dela. Passa-se o resto da vida à procura deste primeiro amor. Ainda que ele seja o sétimo, o décimo, o vigésimo amor, ela queria que ele fosse sempre o primeiro, como o primeiro, inocente e grande, maior do que ela. De quando a quando sentiu que o encontrara, mas a sua complexidade, sempre a complexidade das palavras, dos rumos, dos sentimentos levavam-no. Talvez houvesse algo para além das palavras, algo no que se dizia ou escrevia mas que não estava lá, como quando não sabia escrever e escrevia apenas o que sabia, significando uma outra coisa. Às vezes as palavras não chegam. Às vezes a linguagem não é suficiente. Às vezes é preciso ver para além das palavras. Descolar o eu emocional do eu racional (se o conseguir) e entender o que não é compreensível. O primeiro amor continua dentro dela. Talvez, porém, não chegue na hora certa, no local exacto. É que o primeiro amor não é perfeito, não é pontual, não aparece quando o pedimos. Mas quando chega, ela sabe exactamente que é ele. E ele havia chegado. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Esses que apelidam de lenda

Dizia há muitos anos atrás, nesse tempo em que muitos de nós éramos nada, Jacqueline Kennedy "Agora é uma lenda, mas teria preferido ser um homem". Talvez Lance Armstrong tenha, por fim, desejado ser apenas um homem, de carne e osso, abandonando essa pele de lenda que lhe vestiram. Muitos de nós continuaremos a desejar que ele seja essa lenda, que não seja homem, que seja O homem que transformou o impossível em possível, que seja o tal que, inacreditavelmente, conseguiu o que nenhum homem outrora conseguira, que seja esse em que se busca a tal característica física ou psicológica que faz dele um ser especial, uma lenda. 

Muitos de nós desejam manter a crença de que ele é uma lenda, acreditando que a mentira é verdade e que se ele agora faz uso da verdade está, na verdade, a mentir, porque acreditar é mais fácil. Queremos que ele seja uma lenda, porque as lendas alimentam, as lendas movem, as lendas inspiram. Queremos que ele seja uma lenda para acreditar que afinal aos Homens basta o esforço e a motivação para alcançarem o inalcançável. Queremo-lo porque nada o derrubou no caminho, nada o fez derrubar-se, nem mesmo isso que chamam de cancro. E porque são esses, e não outros, que no fim do seu tempo fazem do tempo de todos os outros que lhe seguem seu tempo também. Perduram, infinitamente, para lá do relógio que a condição humana impõe. Todos querem ser esse homem.

As acções fazem o homem e as lendas criam-se fruto dessas acções. Não sabemos em que verdade acreditar. Em determinados momentos parece errado não acreditar que um entre muitos homens é perfeito. Como parece ser igualmente errado acreditar que há quem o possa ser. 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Uma não partida

Fotografia: Felipe Rocha

Não são necessárias palavras robustas para se falar de saudade. Às vezes penso naqueles dias cinzentos carregados de nevoeiro, que exigem que liguemos os mínimos logo pela manhã para que possamos ver meio metro de estrada, para saber que a saudade é isso. Um lusco fusco num caminho com tanto para trás que queremos voltar a colocar à frente.

Tenho caminhado pela cidade na tentativa de me adaptar às novas cores, de inalar este cheiro novo, de me sentir eu aqui, mas é a minha rua que me cobre a retina. Nos prédios altos vejo as casas de baixa estatura, de janelas abertas para deixar entrar o sol e a roupa lavada estendida no alto. Nas pessoas que correm por este caminho, sem nunca pronunciar um olá ou um sorriso, vejo os rostos da minha aldeia carregados de modéstia e desejo de nos cumprimentar.

A vida já não é a mesma. Não é. O meu coração continua naquele aeroporto, preso aos últimos abraços, preso à angustia da partida. Julgo que nunca parti. Ainda percorro a calçada meia atrapalhada nas pedras incertas, com o cheiro a mar ali tão perto e aqueles que se amam ainda mais perto. Mas ainda tenho os sonhos e embrulhar-me neles dia fora sabe ao som das palavras que me enchem a vida.

É. Parece que nada mudou. Sei que a minha mãe - que saudades - está a cozinhar bacalhau porque é Segunda-feira, o meu pai - que saudades - está sentado em frente a ler o jornal e a ouvir o Preço Certo na televisão e o meu sobrinho - que saudades - corre de um lado para o outro, pronunciando coisas que ninguém entende, mas aos quais todos sorriem. Haverá mais gente depois do jantar. Os meus irmãos - que saudades -, os restantes sobrinhos - que saudades - numa confusão de uma ensurdência quente. Eu chegarei a casa dentro de momentos, quando já todos começaram a jantar e esperam a minha buzina para me abrir a porta da garagem.

Esperem só um pouco. Não tarda nada estarei à porta.