sábado, 27 de novembro de 2010

corpo de cordas

Caminhava a cerca de cinquenta metros quando o som dos acordes penetrou o meu ambiente sonoro. Sabia exactamente que dedos faziam aquelas cordas vibrar, que corpo se encontrava alheado do mundo e fazia correr o sangue através da pauta musical.

Se à matéria fosse injectada vida, também aquela guitarra teria estórias para contar. Estórias envolvidas de excitação ainda a fervilhar entre as palavras, com o prazer a pulsar em cada momento e a ansiedade cosida ao corpo, a desprender-se em cada passo dado antes de entrar no palco. A sua voz descolava-se do silêncio apenas em alguns intervalos do reportório, para deixar a actuação entregue aos diálogos que se soltavam das cordas. Quase não sentia necessidade de aplausos. Era nos rostos paralisados num sorriso, onde as lágrimas banhavam os olhos, que encontrava a maior recompensa. A fama matemática, que faz dos números a satisfação do artista, em nada lhe interessava.

Ainda hoje permite que o seu talento seja transportado para outros dedos. Horas a fio, com a paciência a servir de base de trabalho, transmite cada um dos seus conhecimentos a quem os deseje carregar. E vários foram os nomes que se sentaram frente ao artista, sedentos de música. É também a única oportunidade que têm actualmente de assistir àquilo que ele produz musicalmente. Abandonou os palcos para se dedicar exclusivamente ao que diz ser o mais importante na sua vida, a liberdade. Desprendeu-se, assim, do receio de encontrar com o avançar da idade rostos insaciados entre o público.

A sua rua transformou-se num imenso palco. Há um disco humano em constante loop, fazendo da estrada uma imensa sala de concertos. Aqui já ninguém suporta o silêncio, nem o silêncio se consegue impor. Quem o irá substituir quando a morte o vier buscar?

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

fragmento de guerra

Costumava fumar lentamente. Sentava-se na paragem do autocarro, fizesse chuva ou sol, e ali ficava horas a deliciar-se com as expressões dos condutores que ali passassem. Cansado, porventura, dos rostos inexpressivos, mudou-se para o meio da rua. Agora, mais do que o erguer da mão gosta de puxar da palavra. Mas ninguém lhe dedica mais do que dez minutos de conversa. Temem que o seu diálogo termine nas suas lembranças.

A culpa não é dele. Não foi uma escolha. Foi uma ordem que lhe mudou a vida. Chegou estampada numa carta, de discurso perfeitamente organizado, feito quase na totalidade de palavras que ele desconhecia. Encontrou a carta nas mãos da esposa, quando numa tarde quente de Verão regressava do trabalho. Ela, de olhos cravados na folha branca, apenas conseguiu dizer "não vás". Ele não precisou, então, das palavras contidas naquela carta para perceber o pedido.

Partiu em 1961 para combater em Angola. Tinha o medo enterrado no peito, a perfurar-lhe cada parcela da sua masculinidade e, no entanto, exibia um vistoso sorriso de quem se orgulha de servir a sua pátria.

Uma bala fá-lo-ia regressar um ano depois. Mas ele não vinha só. Trazia os combates, os mortos, os gritos presos à pele, prontos a aí permancer enquanto a vida se prendesse a ele.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

homem silêncio

Aquele recanto pertence-lhe. Foi o tempo quem o ditou. Dia após dia, sem espaço para ausências, aquela cadeira é ocupada por aquele homem. Deixaram de se contar os anos ou as horas que ali permaneceu. Inicialmente limitava-se a saborear um café e a deliciar-se com um único cigarro. Nos dez minutos seguintes fixava um ponto e perdia-se num mundo que só ele era capaz de visualizar. Mas um dia, um daqueles dias que ninguém regista no calendário, ele fez daquele espaço o seu casulo. Era o primeiro cliente a sentir o cheiro torrado e quente do café acabado de fazer e o único a estar presente no fecho das contas. Não proferia nenhuma palavra para além das necessárias aos pedidos e, no entanto, todos sabiam que ele respirava palavras. Após uma leitura intensa dos vespertinos, abria uma espécie de dossier e enchia a mesa de folhas. Pequenas ilustrações a sépia aqui, palavras soltas por ali, folhas limpas e brancas ainda por rasurar, num lote estrategicamente disposto do seu lado esquerdo, e uma caneta, uma mesma caneta que se assemelha a uma amante.

Apelidaram-no de homem silêncio. Um corpo ausente que, à medida que se riscavam os meses no tempo, se transformava cada vez mais em matéria daquela mesa. A sua vida era um vácuo, uma incógnita aos olhos dos demais. Mas jamais alguém se atreveu questioná-lo. Não o conhecem porque as suas palavras são a sua imagem. O homem silêncio é, na verdade, um reconhecido escritor, mas nunca apresentou o seu rosto a par dos seus livros. Refugia-se num pseudónimo e esconde-se num local perdido no interior do mapa nacional, para onde se mudou contam-se já quinze anos. É o seu refúgio, uma forma de fintar a fama.

As palavras surgiram tarde na sua vida. Usou-as aos trinta anos como sua salvação, como único meio de expressão e, sobretudo, como escape da dor quando a morte lhe levou o amor. No dia em que a perdeu atirou as suas memórias e o que restava da sua vida para o interior de uma mala gasta e partiu. A fuga levou-o até uma ilha isolada, para um recomeço que ele visualizava como o fim, para meses de angústia e sofrimento, para um labirinto emocional onde se sentia encurralado. Foram as palavras quem o salvou. Foram as palavras  quem o despertou. Foram as palavras escritas sobre a morte e o amor que fizeram nascer o seu primeiro romance, que fizeram nascer o escritor.

A dor jamais o deixou, jamais o deixará. Ele sabe-o. Sabe que essa dor se cravou na pele, que o perfurou até ao interior dos seus ossos. Mas reconhece que essa mesma dor é o ingrediente principal das suas estórias, o motor do seu eu. Vive com ela, vive graças a ela.

Dez anos volveram desde que aterrara naquele pedaço de terra quando o decidiu abandonar. Foi de novo o amor que o levou a partir. Exactamente no momento em que percebeu que a paixão ia regressar aos seus dias, exactamente quando o seu coração voltou a bater, partiu para Portugal. A alteração geográfica não repercutiu qualquer mudança na sua vida. Só os cheiros, o clima e a paisagem se diferenciam. Perdeu a beleza do oceano, ganhou a magnitude das montanhas. As palavras permanecem. Continuam a surgir em torrentes incontroláveis, a encher páginas, a formar estórias, a serem alimento da alma de tantos. Ele vai permanecer naquele recanto. Ali vai continuar a dar a sua vida à literatura, a recusar dar o corpo ao amor. Aquele recanto pertence-lhe. Pertencer-lhe-á até ao dia em que a paixão o obrigue a uma fuga não planeada, mas obrigatória.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

amor sem título

Era Domingo. Corria uma leve brisa e tombavam das árvores as primeiras folhas de Outono. Em certas zonas daquela localidade sentia-se já o cheiro a lenha queimada a escapar pelas chaminés. Era dia de festa da Sra. da Assunção. As ruas estavam bordadas de papéis coloridos e pétalas de flores, que formavam imagens distintas ao longo do caminho. No interior das casas preparavam-se as melhores iguarias, enquanto sobre a cama aguardavam as melhores vestes, escolhidas especialmente para este dia. O ouro foi retirado das caixas, o cabelo arrumado num impecável penteado.

O povo ia encontrar-se numa mesa estrategicamente colocada no centro da aldeia e, portanto, os corações jovens estavam acelerados. Diziam os mais velhos que no dia da Sra. da Assunção o amor saía à rua para tocar os corações abertos à paixão. A Amélia ria sempre perante a afirmação, descrente de lendas sem conteúdo factual. Contudo, quando ele se sentou frente a ela naquela longa mesa, Amélia julgou que o seu conhecimento era inútil. Há leis impostas pelo amor às quais estamos condenados. Ela não percebeu no imediato o que estava a suceder com o seu corpo. Tinha o olhar preso àquele homem, como se a tivessem acorrentado, e o peito em sufoco. Havia uma vontade incontrolável no seu interior de o tocar, de comprovar a sua real existência. E, no entanto, sentia-se incapaz de movimentar qualquer um dos seus membros. Ele percebeu. Sorriu triunfante e estendeu-lhe a mão. "Sabia que te haveria de encontrar. Sou o Pedro", disse-lhe.

Foi no dia da Sra. da Assunção que Amélia conheceu Pedro. Foi no dia da Sra. da Assunção, volvidos 365 dias, que subiram ao altar. Esta é a estória de amor de Pedro e Amélia, uma estória na qual a barra cronológica pouco ou nenhum peso parece ter. Cinquenta anos volveram, mas as suas almas, mais do que os seus corpos, continuam inseparáveis.

Ele descobriu que tem Alzheimer. Nada mudou. Apenas o medo surgiu nos dias, batendo levemente nas suas costas sempre que olha Amélia. O seu maior receio é esquece-la, é perde-la na fuga das recordações, imposta pela doença. Ele deseja morrer, como forma de vencer as consequências da patologia, mas não o revela. Antes de partir pretende colocar num caderno o que a vida não deve apagar, para que Amélia saiba que o amor sai, de facto, à rua. Ele sabia que haveria de o encontrar. Ele sabia que haveria de encontrar o amor. Encontrou-o no corpo de Amélia.