quarta-feira, 13 de abril de 2011

beijo de cocaína

A culpa é da voz. A culpa é da voz aveludada naquela tarde cinzenta que parecia acareciar-lhe os cabelos, a face, que lhe embriagava a consciência, que lhe amolecia a razão.
- Não leves a voz contigo. Deixa-a repousar aqui no meu regaço. Deixa-a dormir a meu lado enquanto a chuva embate no telhado e salpica os vidros do meu quarto. Deixa-a dar-me a mão, percorrer comigo a longa calçada da cidade. Deixa-a ficar. 

Também a voz desejava ficar. Mas temeu dizer-lho. Escondeu-se, por isso, entre as paredes do silêncio, na expectativa de ser espicaçada, expulsa, atirada contra as garras da coragem. O tempo encarregar-se-ia de o cumprir sob o tecto da noite, fazendo as cordas vocais vibrar sob a forma de um beijo, nessa calçada onde a imaginação havia passeado.

A mão dele procurou as costas dela e suavemente puxou-a contra si. Ela, vencida, de braços presos no tronco dele, alheia aos rostos que os olhavam, atraída pela pele que ardia, sentiu o ar atar-se nos pulmões. Até ao exacto momento em que os lábios se encontraram e, imediatamente, se amarraram. Lábios inebriados, abertos para que línguas sequiosas se deliciassem, enrolados sob o encanto da paixão. Cocaína embrulhada em saliva a infiltrar-se, a instalar-se, a criar dependência incontrolável, insaciável.

Exactamente como uma agulha. Uma agulha que lhe perfurou a veia, injectando uma substância que percorreu cada porção do seu sangue a uma velocidade vertiginosa. Mas isso não lhe bastou.  Mais do que as veias, foi na alma e no coração que a substância se alojou e provocou o seu efeito. Como se subitamente o sol se entranhasse no corpo, espalhando raízes até atingir cada um dos órgãos. Aquela sensação doce de calor a rebentar por cada poro, a deslizar pela pele num ávido fogo silencioso. O arrepio na espinha de um frio inesperado de mãos que atravessam o tronco, que escorregam mortífera e delicadamente até que lhe toca no chão da alma.

Ela a suplicar que o tempo estagnasse, curvada perante o poder do desejo. Dificilmente poderia lutar contra lábios que se assemelhavam a tentáculos, que a agarravam libertando, que a sufucavam prazerosamente. Que vontade poderá existir, na verdade, de vencer um combate que se ambiciona perder, no qual nos desejamos perder?

O beijo. Sôfrego. Intenso. Perene. Eterno. O estar ali não estando. O beijo. Aquele beijo.