terça-feira, 30 de agosto de 2011

coração de terceira idade

Tinha os olhos vermelhos de chorar. Era madrugada e nos corredores apenas se sentia o silêncio. Pesado. Frio. Tão pesado que entrava pelo quarto e parecia sufocá-lo. Aquele silêncio que respirava noite dentro e se depositava no seu corpo dia fora. Já nada o prendia à vida. Aquela ausência de palavras de quem já nada parece ter para dizer, de quem apenas parece esperar, invadia o lar como uma doença crónica. É o silêncio de quem espera a morte, de quem anseia vê-la chegar pela porta principal e o leve ao colo sem necessidade de gentilezas, de um “por favor, acompanhe-me”.

As conversas esgotaram-se no momento em que lhe deram a mão e o guiaram até àquele espaço, vazio de si, vazio de memórias, vazio de vida, deixando as palavras presas na casa que viu a mulher partir e o homem devastado. Estava escondido naquele pedaço de tijolo e cimento morto de fé.

Um corpo feminino e apenas aquele corpo feminino, gasto pelo tempo e pelas histórias, o mantinha preso aos dias. Como um copo de sol que alimenta a alma, observava-a enquanto balançava o corpo na cadeira de verga numa varanda cheia de corpos parados. Movimentava-se ao ritmo da brisa, de meio sorriso na face, como se escutasse as palavras que o seu peito lhe dizia, como se somente o seu corpo ali se encontrasse. E, de repente, fazendo jus ao inesperado olhava-o de soslaio e sorria largamente. Ele corava na sua timidez de velho, sentia o coração de terceira idade bater e perdia-se na face enrugada dela.

É insane, é perene, é loucamente impossível, parece-lhe. E é incontrolável, é poderoso, é repleto de prazer, é incansável, é o escape perfeito dos dias que lhe cortam a carne. É um todo preso em dois corpos que não sabem como se resistir, como medir a vontade, como atirar o querer do cimo do corpo e pisá-lo. Aquele mesmo sonho, aquela mesma vontade, repetida a cada noite e repassada a cada manhã. Tão constantemente, tão insistentemente, que a realidade e o sonho acabaram misturados num pote de reminiscências e desejos injectados de insanidade e toques recalcados. Ele tem de lhe tocar, de a sentir, de a abraçar, de lhe dizer seu. Para que a morte lhe saiba amarga, para que a vida lhe pareça perene, para se sinta morrer se não a vê. Para que, enfim, viver seja mais do que a simples existência.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

mentira colorida

Como se diz amo-te quando a palavra parece gasta? Como se descreve esta aflição sentimental que rodopia entre os órgãos, como um tornado que varre uma cidade e desaparece por entre os escombros? Como se demonstra a um outro que aquilo que nos provoca no corpo não tem descrição possível, não cabe numa palavra só, num amo-te atirado para o olhar aberto do outro?

Como dizer que se gosta em multiplicações múltiplas que não cabem numa equação, em números ou fórmulas matemáticas? Como dizer o quanto a sua existência arrebata o peito e destrói o eu, o quanto um simples acto inunda o sangue de sofrimento? Acreditei que viver entrelaçado na minha verdade enrolada de mentira, sem espaço para verdade, seria a minha fórmula secreta. Qual doce amargura essa de acreditar piamente na mentira que se tece em redor do coração. Acreditei que aquelas correntes que entrelaçaste em torno do meu peito não faziam mais do que sufocar-me o coração e acorrentar a consciência, impedindo essa tal palavra - ‘amar’ - de se espalhar dentro de mim. E por isso vivi agarrado àquela mentira como se fosse ar, como se fosse um daqueles dias de Verão descontrolados que se esgueiram por entre o calendário de Inverno, qual matéria da vida, qual alimento de mim. Acreditei sabendo-me malogrado.

Por isso basta. Vou-me. Hoje sou cavaleiro armado de armadura. Levo este eu numa viagem qualquer, onde a tua imagem seja apenas reposta pela minha lembrança atrevida e a tua existência me pareça coisa da imaginação.