terça-feira, 13 de dezembro de 2011

de dentro



Desceu os degraus gastos de madeira que a conduziam até à praia, descalçou as botas e as meias de inverno e caminhou até que os pés tocassem as águas gélidas da estação com o vento a empurrar-lhe a face e os cabelos. Sentia-se cansada, desse cansaço que se entranha na pele, como a humidade dos dias cinzentos, feito de lascas entranhadas na alma, sem marcas físicas visíveis. Deixou que as ondas rebentassem contra as suas pernas frágeis da tristeza, deixando-se cair para trás contra a areia fria. Sorriu, como se sorrindo tudo se apagasse da memória, como se sorrindo as balas que a memória lhe cravavam no corpo caíssem por terra, como se sorrindo o mar lhe levasse o filho que lhe crescia no útero.


Desejava-o. Sim, desejava-o com esse desejo de mãe, com esse amor que se espalha e intensifica no momento em que se o sabe dentro de si. Mas ele não o desejaria. Ele não a amava, não a olhava de olhos dentro do corpo a chegar à alma. Não era correcto. Seria egoísta. Seria errado deixá-lo gerar, crescer, nascer sem as mãos de amor de pai a tocá-los.

Manteve-se deitada, de corpo molhado e frio, como se assim ficando a baixa temperatura e o som das ondas abafasse a voz que não se calava vinda do mais profundo que profundo possa haver num corpo de mulher.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

pedido dos tempos que o tempo não leva

Estavam sentados na berma do passeio e olhavam para lados opostos da rua. Estavam chateados. Não sabiam se era uma daquelas chatices temporárias a que já não davam importância, senão pelo prazer que tinham em voltar a abraçar-se desse abraço de pazes feitas. De peito duro em defesa do que se diz não se querendo dizer, não se sabendo porque se o diz, deixaram que o silêncio se encarregasse do momento por momentos.

Até que ele, prontamente se coloca de pé, de corpo virado para o dela, ali sentada de olhos pregados nele. 

(o bater descompassado no peito)

Hesitou, perdeu a hesitação, sentiu-se humilhado nessa hesitação. 

(o sangue quente a reflectir-se na sua face)

E sem nada mais do que a alma colada à garganta, esqueceu as modernices sociais e emocionais que o tempo encarregou de colar aos corações e perguntou-lhe:

Queres namorar comigo?

E ela não precisou de palavras para lhe dizer que sim.

(a felicidade)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

reencontro

Tinha-te perdido. Tinha-te perdido e julgava internamente que jamais te voltaria a sentir a pele. Inicialmente contava cada um dos dias. Teimava em lutar contra esse tempo que teima em fazer-nos colocar sob as paredes da carne o que um dia se apoderou de todo o eu. Como se de repente a pilha terminasse e o teu eu, parte do meu eu, estagnasse em parte incerta do meu sangue, num desses pedaços de tecido que se perdem na fluidez das veias.

Quis acelerar. Como se acelerando pudesse apressar o tempo e reencontrar-te. Tive vontade de acelerar enquanto percorria a estrada e te recordava, sentindo-te como quem sente sem sentir na verdade pura do toque. Como se acelerando pudesse alcançar um outro tempo, como se acelerando te pudesse recuperar. Como se acelerando com o volume do rádio no máximo e a lua cheia a iluminar-me chegasse a um outro tempo que o tempo esqueceu, me arrefecesse o sangue quente.

Tive medo, confesso. Tive medo que reconhecesses o meu nervosismo, aquela ansiedade colossal que carregava. Tive medo de não saber fingir um sorriso descontraído. Tive medo que assim que sentisse o teu rosto a nossa história me caisse sobre os ombros, entre o peito e não o conseguisse suportar. Não sabia se deveria aparecer. Senti o estômago, o coração, a razão embrulharem-se, confundirem-se, chocarem. Não sabia se deveria deixar o meu quarto e reencontrar-te depois de tanto tempo. Tu que me conheces a pele, me conheces sob a pele. Tu que me viste partir, deixando a mágoa entregue ao tempo.

O dia entardeceu. Surgis-te, surgi-te entre a luz morna do sol. Ver-te. Sentir-te. Olhar-te nos olhos. Ver o teu sorriso. Ver cada pedaço de ti. Olhar-te como se te olhasse pela primeira vez, com os olhos de saudade. Não te ter. Saber-te perdido. Saber-te, porém, meu. Vou deixar-te novamente. Vamos deixar-nos mutuamente, querendo-nos, sabendo não nos podermos ter. Vou partir. Preciso partir.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

sou-te

Olhava-te do canto da janela do meu quarto, de coração entrecortado, enquanto te admirava o rosto, os olhos presos entre a multidão, os olhos de quem me sabe presente, de quem me sabe ofegante. Deixavas-te ficar do outro lado da rua como se propositadamente me entregasses ao desinteresse que te obrigavas a carregar. Estarias a ouvir a música? A música que me fizeste ouvir naquela noite de chuva intensa em que me encontraste a caminho de casa, molhada. Aquela suave sensação erótica que surge momentaneamente de quem se acha próxima de alguém que inexplicavelmente nos toca sem se movimentar. O toque, esse toque, que chega onde não nos parece ser possível.

Seja  feita a vontade do desejo. Antes que este desejo me consuma até às entranhas, me rebente o coração e me sufoque cada um dos pulmões. Seja feita a sua vontade antes que o controlo seja já descontrolo e a garganta não saiba sequer que a saliva secou. Seja feita a vontade de cada uma das vontades desse desejo avassalador e corrosivo antes que a presença dele se entranhe em cada um dos meus poros. Mas seja feita a vontade desse desejo sem que retire de mim o que dentro tenho. Seja do físico o reino, sem mágoas que escavam entre os ossos, sem ânsias de nós, sem nós na alma. Nesse caso podes vir, uma e outra vez, tantas vezes quantas vezes o desejo te exigir, porque jamais me carregarás contigo.

Não resisti. Acreditei que não resistir traria a paz de quem sente o corpo saciado. Este desejo desconhece, porém, como viver apenas entre as paredes da carne e injecta-se entre o cérebro e o coração. Quanto prazer existiria em viver da carne, sobre a carne, pela carne. Que prazeroso seria dizer adeus a essa palavra amor, roçando-me exaustiva e eternamente no prazer físico, na construção plena do simples desejo e no seu consumo.

Julguei que saberia separar o amor de ti. Sim, julguei. E odeio que hoje saibas que me enganei. Hoje odeio esse poder que sem que saibas exerces sobre mim. Sim, odeio-o tanto quanto preciso de ti.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

a vida que dói sem dor

O mundo é-lhe um outro mundo a cada instante. O mundo será, porventura, o mesmo mundo, cansado e repetido, em todos os seus minutos. Desconheço porém se mundo haverá num corpo de homem que deixou de ser homem para ser simplesmente corpo.

Saberia dizer exactamente o tempo em que o cérebro lhe deixou as palavras agrafadas na garganta. O tempo em que os olhos se transformaram em espelhos baços de quem não tem alma, senão um vazio cinzento, de quem se viu desconstruído na construção interna que o cérebro não foi capaz de manter. Mas contar um tempo que já não deve ser contado, senão em momentos, parece desprovido de sentido. Contam-se as vezes em que o olhar dele se fixa nos meus olhos, como se naquele instante eu fosse carne sua e me soubesse seu filho. Registam-se os sorrisos de quem momentaneamente terá recordado os empurrões suaves no baloiço do jardim rodeado de gargalhadas infantis e promessas adultas. Regista-se a vida, o tempo em que a vida parece viva num corpo preso a uma existência deambulante inerte.

Dou-lhe a mão e regressamos a casa. Conto-lhe ininterruptamente cada uma das histórias da história que somos, esquecendo a ausência em que o silêncio o transformou. E vejo-o caminhar como se caminhasse numa estrada infinita feito homem inútil que espera o térmito não o sabendo esperar.

Somente aquele cigarro o parece manter amarrado à existência. Como se uma parte autónoma de um corpo dependente se prendesse à necessidade de um vício que não adormece nem morre.

A doença de Alzheimer levou-lhe a alma por inteiro. Resta-lhe a carne. Resta-lhe a paz do nada e a incompreensão inexistente manifestada quando a palavra era voz. Resta ele, o calor de um corpo, o cheiro, o toque. Resta-me ele e isso basta.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

do amor que deixa nódoa

Foto: Mila Lippitz

Julguei-me doente. De uma dessas doenças incuráveis, que parecem assassinar todas as vontades, inclusivé a de ter esperança. Julguei-me mais tarde uma louca. Não porque a insanidade me destruísse a dependência e a racionalidade, mas na verdade porque a insanidade emocional que atravessava todo o meu corpo me deturpava o mundo, moldando-o à sua maneira, à maneira idílica, feita dessas perfeições amorosas que a própria perfeição reconhece ser impossível. Foram várias as vezes, incontáveis vezes as vezes em que me julguei culpada. Culpada por não saber amar, por não saber como amar, quando amar, quem amar.

Tornou-se insuportável. Como uma torre a desmoronar-se para dentro de mim. O coração prestes a explodir, de artérias bloqueadas, esmagado contra o peito, o desejo a alastrar-se como fogo, o amor como alimento fantasma e o vazio. O vazio interno de quem sabe de cor um não gritado sem palavras. Quantas vezes ansiei abandonar o amor numa dessas ruelas onde ele pudesse sentir na pele a dor muda que nos dispara. E ele de mãos entrelaçadas num jogo de brincar entre dedos de quem se sabe uma necessidade absoluta.

Mergulho nas águas gélidas de Outono, como se de certa forma acordasse este corpo de uma realidade que o atravessa e não lhe pertence. Como se estas águas frias e plenas de pureza possam rasgar este sentimento de não pertença, possam lavar uma alma suja que tece crítica em torno do maior dos sentimentos, possam, enfim, massajar esta mágoa dura que se alastra pelos tecidos enquanto o dia rompe por entre a folhagem castanha de estação entranhada. Está sol e eu sou feita de carne.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

despedida

Trazia aquele perfume. Inebriante. Perfume de dejá vu. Perfume do corpo que carregava aquele vestido vermelho atrevido nos seus movimentos de seda fina que roça a pele e me atormetava a racionalidade de macho seguro. Perfume do dia em que cravaste os olhos nos meus e me fizeste presa. Perfume que carregaste no dia em que te despediste de mim, levando-me, porém, contigo. Sabe-lo-ás?

O pôr-do-sol a deixar-te em contraluz, a tua silhueta leve a arroubar-me os sentidos, envolvidos por aquele laranja quente de fim de tarde de Verão. Não tínhamos palavras. Na verdade, não existiam palavras certas, suficientemente profundas ou esclarecedoras que pudessemos usar. Deixámos apenas que o som das gaivotas naquele longe tão próximo e o roçagar da água fossem o todo que desejávamos reter. Os teus dedos entrelaçados nos meus, amarrados, receosos; o sorriso frágil banhado pelo poente dizendo-me adeus; os olhos mergulhados de tristeza a cravarem-se-me no peito. Evitámos o abraço, como forma de evitar as lágrimas, como meio de evitar o buraco que inevitavelmente se abriu ali.

Dias houve em que tudo quanto ansiei  se resumia a ver-te longe. De mim, da minha memória, dos meus sonhos, dos meus tormentos e dúvidas. Dias houve em que tudo quanto representaste não foi mais do que uma dor que se atravessava insistentemente no meu caminho. Esquecemos continuamente que a cedência do corpo é mais do que uma cedência carnal, que separar o eu racional do eu emocional é falha humana instituída e incontrolável. E sabendo à priori que a saudade se acercaria de mim como uma carraça, permiti-te.

O perfume. O teu perfume rodopia ininterruptamente entre estas árvores, na língua do sol, na brisa que as asas das gaivotas fazem correr. Pessoas há que jamais partem. Nem o tempo nem a vida as levam. Continuam presas entre as artérias, entre os dedos, entre os lábios, no tronco e em cada parcela que nos tenha deixado.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

coração de terceira idade

Tinha os olhos vermelhos de chorar. Era madrugada e nos corredores apenas se sentia o silêncio. Pesado. Frio. Tão pesado que entrava pelo quarto e parecia sufocá-lo. Aquele silêncio que respirava noite dentro e se depositava no seu corpo dia fora. Já nada o prendia à vida. Aquela ausência de palavras de quem já nada parece ter para dizer, de quem apenas parece esperar, invadia o lar como uma doença crónica. É o silêncio de quem espera a morte, de quem anseia vê-la chegar pela porta principal e o leve ao colo sem necessidade de gentilezas, de um “por favor, acompanhe-me”.

As conversas esgotaram-se no momento em que lhe deram a mão e o guiaram até àquele espaço, vazio de si, vazio de memórias, vazio de vida, deixando as palavras presas na casa que viu a mulher partir e o homem devastado. Estava escondido naquele pedaço de tijolo e cimento morto de fé.

Um corpo feminino e apenas aquele corpo feminino, gasto pelo tempo e pelas histórias, o mantinha preso aos dias. Como um copo de sol que alimenta a alma, observava-a enquanto balançava o corpo na cadeira de verga numa varanda cheia de corpos parados. Movimentava-se ao ritmo da brisa, de meio sorriso na face, como se escutasse as palavras que o seu peito lhe dizia, como se somente o seu corpo ali se encontrasse. E, de repente, fazendo jus ao inesperado olhava-o de soslaio e sorria largamente. Ele corava na sua timidez de velho, sentia o coração de terceira idade bater e perdia-se na face enrugada dela.

É insane, é perene, é loucamente impossível, parece-lhe. E é incontrolável, é poderoso, é repleto de prazer, é incansável, é o escape perfeito dos dias que lhe cortam a carne. É um todo preso em dois corpos que não sabem como se resistir, como medir a vontade, como atirar o querer do cimo do corpo e pisá-lo. Aquele mesmo sonho, aquela mesma vontade, repetida a cada noite e repassada a cada manhã. Tão constantemente, tão insistentemente, que a realidade e o sonho acabaram misturados num pote de reminiscências e desejos injectados de insanidade e toques recalcados. Ele tem de lhe tocar, de a sentir, de a abraçar, de lhe dizer seu. Para que a morte lhe saiba amarga, para que a vida lhe pareça perene, para se sinta morrer se não a vê. Para que, enfim, viver seja mais do que a simples existência.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

mentira colorida

Como se diz amo-te quando a palavra parece gasta? Como se descreve esta aflição sentimental que rodopia entre os órgãos, como um tornado que varre uma cidade e desaparece por entre os escombros? Como se demonstra a um outro que aquilo que nos provoca no corpo não tem descrição possível, não cabe numa palavra só, num amo-te atirado para o olhar aberto do outro?

Como dizer que se gosta em multiplicações múltiplas que não cabem numa equação, em números ou fórmulas matemáticas? Como dizer o quanto a sua existência arrebata o peito e destrói o eu, o quanto um simples acto inunda o sangue de sofrimento? Acreditei que viver entrelaçado na minha verdade enrolada de mentira, sem espaço para verdade, seria a minha fórmula secreta. Qual doce amargura essa de acreditar piamente na mentira que se tece em redor do coração. Acreditei que aquelas correntes que entrelaçaste em torno do meu peito não faziam mais do que sufocar-me o coração e acorrentar a consciência, impedindo essa tal palavra - ‘amar’ - de se espalhar dentro de mim. E por isso vivi agarrado àquela mentira como se fosse ar, como se fosse um daqueles dias de Verão descontrolados que se esgueiram por entre o calendário de Inverno, qual matéria da vida, qual alimento de mim. Acreditei sabendo-me malogrado.

Por isso basta. Vou-me. Hoje sou cavaleiro armado de armadura. Levo este eu numa viagem qualquer, onde a tua imagem seja apenas reposta pela minha lembrança atrevida e a tua existência me pareça coisa da imaginação. 

quarta-feira, 27 de julho de 2011

amor maior

Havia chegado o dia e a hora. Aquele dia que o corpo preparara desde que há vários meses atrás começou a ganhar forma, a desenvolver vida, a sentir que parte de si, que grande parte de si, era aquilo, aquele pedaço seu que crescia semana após semana e lhe tocava as entranhas, lhe pesava deliciosamente, que a fazia sentir uma outra, sem saber que outra, mas sabendo que era uma outra melhor, com mais força, com mais vontades.

Havia chegado o dia e a hora e ela preparava-se ansiosamente, com o coração preso na boca, com o coração preso em cada fragmento seu, para o momento. Respirar pouco a pouco aquele amor que se queria soltar, que a queria deixar para se transformar em algo maior, em algo visível, em algo palpável. O corpo a rasgar-se e ela de sorriso na boca de satisfação. As mãos que a abriam e o sorriso que se mantinha. As mãos no seu interior a revolver cada pedaço seu, a tocar nos seus órgãos, como se remexe num saco à procura da melhor guloseima, e ela de sorriso na face.

Aproximava-se a hora, aquela hora. O sangue a correr por entre as toalhas, a escapar-se até tocar o chão e o sorriso a chegar-lhe aos olhos. As mãos que não paravam a busca e o sorriso a querer apoderar-se de todo o corpo dela. As mãos que tocam algo, sabendo que é aquilo que buscam, sem necessidade de visão, repletas de prazer pelo toque, pelo simples toque, o primeiro toque. As mãos que puxam e o sorriso a querer invadir toda a sala.  

De entre um corpo aberto, rasgado, eis que algo em forma de circunferência surge. Lavado em sangue e matéria do corpo, é puxado do corpo que o formou. E, de repente, num escasso segundo, ele surge, de corpo assustado entre tremores. O sorriso apodera-se de todo o edifício, faz rebentar o corpo dela e a sala. Tão fortemente, tão tremendamente poderoso que eis que as lágrimas se soltam, abundantemente, enquanto lhe cortam a ligação física com aqueles corpo frágil.

O peito a rebentar de amor, a soltar-se inexplicavelmente por cada poro, por entre os pedaços de dor. O não saber como o explicar, como se dizer o que se sente, como se o sente, que sentir é aquele de um corpo frio sobre o corpo quente dela. O não saber nada e sentir que se tem tudo, que se é tudo, que ele é tudo. A palavra, a tal palavra que desde o primeiro mês lhe chegou aos ouvidos é agora palavra tocável, quente, plena de prazer, sorriso autónomo, lágrima de paixão eterna. Ela é mãe.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

chegada

Ruas, ruas, mais ruas, rostos que surgem para rapidamente desaparecer, risos, metades de palavras atropeladas pelo fim de outras, o som distante das ondas a embaterem contra a areia que rompe pela janela entreaberta e a música que parece querer rasgar as colunas do carro para se soltar no vento que choca no meu cabelo e faz esvoaçar a carta sentada a meu lado. Quilómetros e quilómetros em estradas ao acaso, uma busca desconcertante de um lugar que não descobri mas sei existir. Há uma sensação extasiante de paz quase a consumir-me. Um sentimento pacificador de plenitude a entranhar-se-me no peito.

O riso a ritmo claramente inocente ecoa-me pelo cérebro. Solta-se das minhas memórias para se espalhar em mim e se evidenciar orgulhosamente no sorriso que esboço inconscientemente. 7 de Maio. A palavra "papá" a sair-lhe da boca, a repetir-se vezes sem conta perante os meus aplausos. Preciso encontrar esse lugar. O tal lugar. É matéria espiritual. Ela é matéria espiritual. Não. É corpo. Foi corpo. Será sempre corpo. Está numa casa com jardim e piscina. Ela adora água. Está sentada no chão do quarto de paredes rosa, a brincar com os cabelos das bonecas. Talvez lhes esteja a fazer tranças. Certamente. Tranças. Largas. Em cabelos compridos e ondulados. Como os dela. Como o mar. Continua a sorrir. Ela está a sorrir. Sabe-me perto dela sem o estar, não sendo necessário estar para que ela me saiba presente.

Mais quilómetros. O sol a lamber o mar com a sua longa língua alaranjada exposta desde o horizonte até ao areal. Costumávamos fazer castelos de areia molhada e pesada, a colar nas suas pernas, a envolver-se nas pontas dos seus cabelos.

Estou mais próximo. Sinto que estou mais próximo. Sei que estou mais próximo. A saliva abunda-me na boca, entre os pedaços de coração que se entranham nas glândulas e me fazem remexer o estômago. Estou mais próximo. Ouço-a rir. Cada vez mais alto. Como no dia em que se olhou ao espelho e julgou-se outra. A cama estava vazia quando a fui rever. Os lençóis puxados para trás, a almofada que ganhara a forma do seu crânio, o peluche abandonado contra as traves de madeira. Levaram-na. Não. Ela está na sala a dar os primeiros passos agarrada aos móveis como se fossem mãos. Estou mais próximo. Sim. Muito próximo. O cano do revólver contra a minha espinha perdeu a frieza. Começa já a penetrar a minha carne. A bala começa a desejar fortemente saborear a minha massa encefálica, penetrar as minhas memórias e aí repousar. Sim. Os meus dedos querem tocar o gatilho. Ela continua a sorrir. Sabe que estou próximo. "O papá está a chegar, filha." Já sinto o cheiro dos cabelos dela nas minhas narinas. Sorrio. É aqui. Sim, é este o lugar. O vento dá lugar à brisa. O sol é engolido pelo mar. Os pés tocam a areia. As ondas rebolam praia fora. Sim. É aqui. É esta a hora. Pego no revólver. Sorrio. Coloco o polegar no gatilho e o cano contra o crânio. Cheira a mar. Sorrio largamente. "Querida, o papá chegou." Vejo-a abrir os braços. Primo o gatilho.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

perfeição imperfeita

A cadeira é fria, como lâmina que não corta mas se sente aguçada. A pele dela é vermelha. É quente. Quase sinto os dedos queimar quando os deixo escorregar pelo peito dela. É mais perigoso ainda do que o fogo de Inverno, esse capaz simplesmente de provocar conforto na pele e, sobretudo, no espírito. Ela tem o cheiro do vento que me entra nas narinas, carregado do aroma das tulipas, após ter atravessado o jardim que envolve a praça. Já não necessito da voz dela. Encontro-a através do calor que os seus poros emanam e que se entranham na minha pele, nas minhas mãos. Sei-a perto de mim não porque lhe toco, mas porque a sinto com a alma.

Era Sábado. Estávamos numa festa popular e perdemo-nos. Aprendi que não havia necessidade interna de me preocupar. Ninguém se perde totalmente a não ser que o deseje veementemente. Enquanto caminhava entre a multidão abriam-se alas, num acto já de si inconsciente. Alas que me faziam sentir único, especial, de um especial que não se anseia ser. Sabia que a preocupação era desnecessária, porque ela estaria no meio do corredor que surgia à minha frente. Jamais se colocou de lado, por isso nunca a soube perdida.

Ter nascido cego terá sido, porventura, um privilégio. A esperança dos outros de que um dia pudesse recuperar a visão assustava-me. Nunca sonhei abrir os olhos e ver a forma e cor dos objectos, do mundo, das pessoas. Sempre soube que nada poderia ser mais prazeroso do que o toque, a sensação perpassada para os meus dedos das texturas das coisas, da brandura da pele dela. Nada poderá suplantar o sorriso que me corre nas mãos quando lhe toco a face, o sabor, os cheiros e os sons que numa sintonia perfeita constroem o que me rodeia.

Não necessito dos olhos para ver. Aqueles que vêem, não vêem na realidade senão o que a realidade lhes mostra. Desconhecem que apenas vemos quando fechamos os olhos e sabemos que não estamos perdidos nem perdemos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

ausência

Pintaram as paredes de azul como o céu, para que não existissem muros que os separassem do exterior e plantaram um jardim de tulipas e árvores de floresta para esquecerem o mundo sempre que se deitavam sob a sombra dos seus longos ramos. Anos depois atiraram cordas em torno dos braços fortes do carvalho e fizeram-nas balançar uma e outra vez e mais uma vez, vezes das quais se perdeu a conta de tão gastas ficaram essas cordas, mas incapazes de deitar por terra o frágil corpo da criança que se fazia baloiçar.
As paredes perderam o azul para ganhar uma cor acastanhada, emaranhada de amarelo, com o azul a esconder-se entre as tonalidades, a desprender-se em pequenas lascas, a querer desaparecer. E com a cor toda a casa ganhou idade, maturidade, histórias coladas a cada um dos seus recantos, feitas de palavras que se soltavam dos lábios dela, dos sons que tomaram forma desprendidos da boca do bebé, agora homem. Como se tivesse peito, como se houvesse um coração algures, dentro da gaveta da cozinha, no armário do quarto ou quiçá debaixo dos lençóis.
Os brinquedos continuavam no grande cesto de verga encostado à parede da sala, com o carro de madeira comprado à beira-mar, naquela única viagem que haviam podido fazer no correr dos 17 anos em que se abrigaram sob aquele mesmo tecto. Os rostos continuavam petrificados em molduras que o pó se encarregou de cobrir, os desenhos de aguarelas começavam a ser lambidos pela humidade, pelo ar preso que parecia cortar as madeiras e fazer estalar os tacos do chão. Eles haviam partido.
Deixaram o passado perfeitamente desarrumado, dividindo os anos em parcelas deixadas sem acaso em cada uma das divisões da casa. Como se a mobília não necessitasse de sentir as mãos que delicadamente lhes fazem escorrer as gavetas, como se o colchão não precisasse de sentir o roçar suave daquela pele entre o seu tecido. Como se julgassem que a presença inconstante de um ser que lhes retira as teias lhe mantivesse a vida.
Quão enganados estão aqueles que partem acreditando que o que deixam é perene. A ausência cria mais rachas que uma presença intensa, a partida abre mais fendas que o bater das portas, a corrida entre o corredor e o quarto, a bola que bate insistentemente na parede. A casa deixou de respirar. Deixou de respirar porque o ar partiu naquele carro, dentro de cada uma daquelas caixas, no interior de cada um daqueles corpos que a habitou.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

pretérito imperfeito perfeito

Colocou os pés no solo do centro histórico e inspirou. Um cheiro a rosas, ainda a desabrochar, inundava o ar da cidade, contrastado com o repucho de água, que quase realistamente libertava o ar saturado do calor próprio de Agosto. Mulheres de guarda-chuva ocupavam os bancos de madeira dispostos em torno da pequena fonte, vigiadas pela imponente Sé, estrategicamente erguida no ponto mais alto da cidade.

A vida não tinha limites, não tinha fronteiras, não tinha uma cultura preestabelecida, não tinha um padrão social, um trilho demarcado. A vida era uma estrada sem sentido único, repleta de cruzamentos, chegadas e partidas. A vida era cheiros que recordavam lugares, lugares que despoletavam pessoas, pessoas que carregavam cheiros. A vida, a vida dela era assim. Vivências coladas à sola das sapatilhas, amores pastilha elástica, um mapa repleto de circunferências, um arquivo de histórias que a memória desconhecia já onde guardar.

São dias conjugados no pretérito imperfeito que se penduram no presente como dentes que se cravam na pele. Memórias envolvidas em saudade que o sorriso não esconde e a calçada reflecte. É ela, a sua velhice e uma aldeia escolhida para o sempre que lhe resta.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

utopia

Dobrava a esquina e enfiava a manga do casaco rompido no braço esquerdo quando a viu. Olhou-a de relance enquanto ela continuava o percurso numa espécie de câmara lenta. As pernas continuaram em frente, inconscientemente tomando um passo menos veloz, à medida que os olhos, parte autónoma do corpo, ficaram cravados nela. A vontade de prosseguir a querer fazer-se ouvir e o peito a calá-la, desejando manter os pés colados à calçada da baixa.

Permaneceu o olhar, mais e mais profundo, de olhos embrulhados em rugas, petrificados perante a delizadeza do andar, o sorriso permanentemente arregaçado na face de um todo quase excessivamente feminino. Aquele carácter de mulher a saltar-lhe dos poros, transformando-o em simples pedestal de carne e osso. Ele ali, como um cão, dois passos atrás snifando o odor extravasado da pele dela, apoderado por aquele desejo que roça as paredes e se arrasta pelo chão.

Quanta ânsia de poder ter o que se não pode ter, de tocar o que antes de lhe tocarmos já se cravou no nosso querer. As palavras atravessavam-se no seu inconsciente, atropelavam-se, embatiam em momentos fantasiados ao longo dos muitos dias em que atravessou aquela mesma rua, àquela mesma hora simples e puramente para a ver passar. Mas impunha-se a barreira de um amor proibido, espelhado naquele anel de ouro que ela carregava. Prosseguia, porém, motivado pelo anseio, pela simples aspiração de saber-se presente nos olhos dela. Imaginava-a a entrar no comboio, a desprender o olhar do corredor e a encontrá-lo do outro lado do vidro com um olá desejoso de ser disparado da língua.

No entanto, dia após dia, o comboio iniciava a marcha sem qualquer cruzamento de olhares, sem a descoberta daquele outro. Escapava-lhe consciente e prepositadamente o fundamento presente naquela sua atitude de voyeur. Ela mulher casada, ele vítima de uma louca paixão platónica. Mas satisfazia-lhe a mera observação de um ser que sendo desconhecido se manteria enclausurado na sua excelência. O seu amor jamais seria beliscado pela desilusão, pelo logro da expectativa e manter-se-ia eternamente no cume da perfeição. Um passado que desenvolveu um coração em ruínas permitia-lhe reconhecer que, por hora, vê-la poderia ser mais prazeroso do que tê-la.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

ferro de carne

Ela, moldada de perseverança, tecida de uma resistência suave, quase calada, permaneceu em terras alinhavadas de estereótipos tradicionais esgotados.

Encerrou o corpo na casa caiada de amargura e sonho. O pêndulo do relógio de cucu a baloiçar para lá e depois para o outro lado, demorando o tempo que um segundo deve demorar. Retratos a preto e branco, outros a sépia, espalhados pelas paredes gastas, sobre os móveis rompidos. A chuva que caía no exterior fazia com que as paredes parecessem toalhas molhadas a impedir o ar de rasgar o pano e se espalhar pelas divisões. Apenas a antiga televisão vestida de renda habitava a casa.

Do interior olhava aquelas outras mulheres, petrificadas nos seus sorrisos inquebráveis de miseráveis casamentos, revestidas de um sentimento de condenação que chegava a transbordar dos olhos. Enquanto ela, diminuída pela sua coragem, saboreava a maledicência amarga do divórcio, sabendo, contudo, que transgredir bloqueios sociais lhe deu a força necessária para os anos exigidos pelo tempo.

Mas viver a par do silêncio injectou-a de dureza, enterrou-lhe as palavras, tornou-a ferro feito de carne. A delicadeza do toque, essa, ficou retida algures entre uma memória do passado e um desejo no presente.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

beijo de cocaína

A culpa é da voz. A culpa é da voz aveludada naquela tarde cinzenta que parecia acareciar-lhe os cabelos, a face, que lhe embriagava a consciência, que lhe amolecia a razão.
- Não leves a voz contigo. Deixa-a repousar aqui no meu regaço. Deixa-a dormir a meu lado enquanto a chuva embate no telhado e salpica os vidros do meu quarto. Deixa-a dar-me a mão, percorrer comigo a longa calçada da cidade. Deixa-a ficar. 

Também a voz desejava ficar. Mas temeu dizer-lho. Escondeu-se, por isso, entre as paredes do silêncio, na expectativa de ser espicaçada, expulsa, atirada contra as garras da coragem. O tempo encarregar-se-ia de o cumprir sob o tecto da noite, fazendo as cordas vocais vibrar sob a forma de um beijo, nessa calçada onde a imaginação havia passeado.

A mão dele procurou as costas dela e suavemente puxou-a contra si. Ela, vencida, de braços presos no tronco dele, alheia aos rostos que os olhavam, atraída pela pele que ardia, sentiu o ar atar-se nos pulmões. Até ao exacto momento em que os lábios se encontraram e, imediatamente, se amarraram. Lábios inebriados, abertos para que línguas sequiosas se deliciassem, enrolados sob o encanto da paixão. Cocaína embrulhada em saliva a infiltrar-se, a instalar-se, a criar dependência incontrolável, insaciável.

Exactamente como uma agulha. Uma agulha que lhe perfurou a veia, injectando uma substância que percorreu cada porção do seu sangue a uma velocidade vertiginosa. Mas isso não lhe bastou.  Mais do que as veias, foi na alma e no coração que a substância se alojou e provocou o seu efeito. Como se subitamente o sol se entranhasse no corpo, espalhando raízes até atingir cada um dos órgãos. Aquela sensação doce de calor a rebentar por cada poro, a deslizar pela pele num ávido fogo silencioso. O arrepio na espinha de um frio inesperado de mãos que atravessam o tronco, que escorregam mortífera e delicadamente até que lhe toca no chão da alma.

Ela a suplicar que o tempo estagnasse, curvada perante o poder do desejo. Dificilmente poderia lutar contra lábios que se assemelhavam a tentáculos, que a agarravam libertando, que a sufucavam prazerosamente. Que vontade poderá existir, na verdade, de vencer um combate que se ambiciona perder, no qual nos desejamos perder?

O beijo. Sôfrego. Intenso. Perene. Eterno. O estar ali não estando. O beijo. Aquele beijo.

segunda-feira, 28 de março de 2011

boneca de coração farpado

Não é em mim que toca. É numa espécie de segunda pele, feita de cimento, que reveste cada parcela de mim. Cobre estes meus ossos, estas veias, estes órgãos, esta alma, impedindo que a sua saliva se misture com a minha, impedindo que os seus dedos deixem impressões digitais nos meus seios, nas minhas coxas, impedindo, sobretudo, que o meu ritmo cardíaco dispare, se deixe embalar pelos movimentos destes corpos, deitados em leiçóis velhos, por vezes despojados em estofos com cheiro a cigarro, colónia barata de quem pouca necessidade tem de parecer perfeito para me encontrar.

Lanço-me de novo à rua, exibindo sob as luzes foscas uma saia curta de toque macio, a blusa decotada de cor arrojada, estes longos cabelos libertos ao sabor da velocidade do vento. Passeio este corpo, que não o é, carregado em tacões de tamanho consideravelmente adaptado aos desejos masculinos.

As palavras que rompem das janelas dos carros deixaram de ser balas disparadas contra esta pele. Transformaram-se em vozes abafadas, lançando palavras rompidas pelo tempo. E transformaram o que resta de mim numa boneca indefinida, moldada a partir de esboços de perfeição, que perdeu o lugar na primeira prateleira.

Continuo à espera. À espera que o alcatrão deixe de ser o quarto, a sala, a casa, quando a cidade adormece. À espera que um dia este coração estagnado, gasto, receoso, sacuda o pó, erga a cabeça, faça bater as asas. À espera que esta espera não morra nas mãos da conformação.

Sim, sou prostituta. Sim, resignei-me. E então? Não acabamos todos por, em certo período das nossas vidas, nos resignar. Afinal, sou apenas mais uma. Na verdade, nada em mim é diferente.

quinta-feira, 10 de março de 2011

dependência

Primeiro a perna esquerda. Agora a direita. Depois aquela força que parece vinda das entranhas para erguer o tronco, até conseguir aquela elevação necessária para que as velhas e frágeis mãos dela me possam suster. Hoje veste-me uma camisola de lã, sem nunca demonstrar o quão difícil é a tarefa. Os músculos prenderam-me os braços, o tempo fará com que todo o corpo se transforme numa estátua. Sei que o diagnóstico não falhará. Conseguir afastar os membros superiores 10 centímetros do corpo é uma vitória, mas as vitórias tendem a ver a sua importância fragilizada.

Tenho as palavras coladas nas paredes da garganta. Moram lá ainda antes do branco ter-se apoderado dos meus cabelos, antes das cataratas se terem apropriado dos meus olhos, de terem deturpado o meu olhar, antes mesmo da doença de Parkinson ter chegado ao corpo dela.

15 minutos. 15 minutos é o tempo necessário para abandonar o colchão e colocar este homem magro que sou na cadeira de rodas. A espinha que parece quebrar, a pele que quase rompe, as chagas que se abrem, o coração prestes a rachar. Só o sorriso dela atenua a dor. Aquele suave e ténue sorriso que a velhice lhe ofereceu.

O meu mundo é esta casa. É esta casa e o que vejo das suas janelas. É o som emanado da boca dela e o toque das suas mãos na minha face, na minha cabeça, no meu peito. É a chuva que bate nos portais e o sol reflectido na minha pele. É o olhar dela a respirar amor, a ausência de pena quando coloca o cobertor sob as minhas pernas e me arrasta até à sala. O meu mundo parece uma caixa feita de tijolos, comandado pelo som das rodas enferrujadas da cadeira. O meu mundo é isto: as suas mãos nas minhas, as minhas mãos nas dela. Somos velhos, estamos sós. Não estamos sós porque nos temos.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

(des)construção

Eu não existo. Sou um ser vivo deambulante que deixou os sonhos numa ruela, encerrados num saco preto que apertei de forma veemente de forma a que nenhum gato ou cão abandonado os possa libertar. Sou um daqueles corpos que deixou de saber como viver os momentos, permitindo que os momentos decidam como devem ser vividos. Sou matéria flutuante num mundo feito de rochas laminosas onde me deito noite após noite.

Os meus olhos não sabem mais o que vêem, talvez por não saberem aquilo que querem ver, talvez por não saberem aquilo que devem ver, talvez por não haver nada mais para ver. Mas sou um corpo cuja brisa ainda toca o coração, que vive sob a chuva e sob o sol com a mesma intensidade, uma intensidade que não deve ser imposta pelas estações ou temperaturas que o tempo nos atira.

Não há passagem do tempo ou morte, apenas uma existência inerte, aberta aos desejos dos outros, ineficaz no cumprimento do amor, eficaz no cumprimento do fingimento. Sou, enfim, este corpo que diariamente se prosta a sentir o toque da madeira deste banco gasto e se regozija simplesmente em olhar o mar, sem dar uso à razão, ignorando a emoção, dizendo não àquilo que as ondas me dizem.

Sou um corpo a balançar no querer. Um corpo que hoje quer esquecer o ontem e pouca importância pretende dar ao amanhã. Sou assim, simplesmente, indecifrável, inexplicável, o que na minha permanente (des)construção é uma identidade sem base, uma escultura inacabada esquecida num atelier qualquer.

Sou, na verdade, o fruto de um coração que se partiu vezes sem conta e que de tanto se quebrar deixou pedaços abertos. Mas a real verdade, se me perguntarem, é que sou um nada querendo ser tudo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

palavra maligna

Trazia os exames de rotina dentro de um saco gasto de outros exames e esperava num corredor branco entre muitos outros pacientes. Nomes desconhecidos a serem projectados pelas colunas de som, queixas partilhadas, portas que se abriam e fechavam e aquela espera incessante. Tinha um compromisso importante. Não podia esperar. Mas a espera teimava em prolongar-se, arrastando os ponteiros do relógio.

O gabinete para onde o encaminharam ficava no fundo do corredor, mesmo de frente para a saída. No interior havia duas cadeiras visivelmente desconfortáveis, utensílios médicos espalhados por pequenas mesas e livros onde o pó se havia instalado. Ele distraía a atenção, enquanto o envelope que um outro médico lhe entregara com carimbo urgente era rasgado. Não era a primeira vez. Provavelmente teria de voltar a tomar os mesmos medicamentos, voltar a ter os mesmos cuidados com a alimentação, ouvir aquelas mesmas recomendações. Não era a primeira vez.

Não via de forma perceptível o rosto do médico. O sol incidia fortemente nas janelas por detrás da sua imponente cadeira, deformando-lhe os contornos. Subitamente, viu formarem-se pequenas rugas de preocupação em torno dos olhos do homem à sua frente. A testa franziu-se, o olhar focou. Enquanto ele, inexplicavelmente hirto, via a cabeça do médico percorrer por várias vezes a carta, do topo até à última linha. Depois olhou-o fixamente. Ele esperou.

As palavras surgiram primeiro pausadas. "Cancro" ... "Terminal" ... Depois em torrentes quase descontroladas. "Quimioterapia" ... "Não desista" ... "Radioterapia" ... Ele não percebia. Ele precisava apenas de mais medicamentos, de grelhados, de não exagerar  no sal. Que palavras eram aquelas? O corpo começava a perder os movimentos. O suor, a pele a estalar, o peito a abrir-se, as veias a esvairem-se, o cérebro a agitar-se, a tentar entender, a vasculhar cada memória, cada possibilidade de ver como uma mentira todo aquele momento.

"Cancro", a palavra ecoada vezes sem conta no ar. O medo a alastrar-se por cada uma das suas moléculas e os lábios do médico que não paravam de se mover. Que silêncio era aquele que o impedia de ouvir? Que angústia era aquela que lhe prendia a língua? Que palavras eram aquelas que lhe cortavam os membros? E aquele cheiro indecifrável a hospital que lhe retorcia o estômago.

Ele precisava sair daquela sala, correr todo aquele corredor até encontrar a saída. Tinha a morte a baloiçar frente ao olhar e, no entanto, os músculos não reagiam. "É, então assim. É assim o fim", pensou. Recostou-se na cadeira e durante um largo momento permitiu que o silêncio se apoderasse de si.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

estupro do eu

Era a noite quem ela mais temia. Não por recear a ausência de luz ou a repentina quietude que habitava os recantos daquela casa. Não. Era exactamente aquele momento em que a rua se rendia ao silêncio, em que o mundo parecia estagnar. Aquele momento que abria as portas ao medo. Entranhava-se no seu tronco como o frio do Inverno se entranha nos corpos. Perfura a roupa, infiltra-se nos poros, contamina todo o sangue, até que, por fim, se instala no coração, como mortífero vírus. O medo que a impede de fechar os olhos, de retirar o olhar da porta da entrada. O medo que lhe faz o coração saltar contra o peito, querendo quebrar cada um dos seus ossos.

Até que o silêncio é cortado pelo ranger frio da fechadura e pelos passos pesados daquele homem sobre os tacos soltos do corredor.

Os passos ainda lá ao fundo.
O bater descompassado do seu coração.
Os passos a aproximarem-se e o seu peito a ser esmagado.
Os passos a entrarem no quarto e o corpo a querer explodir.
Os passos frente à cama, acompanhados do cheiro a tabaco embebido em whisky, e o cérebro a gritar contra o crânio.
"FOGE".
A palavra a empurrar-se contra a pele, a palavra em órbita. A palavra sem acção.
O corpo dele sobre ela, a rasgar-lhe as vestes, a atirar-lhe palavrões para a face.
As mãos que lhe prendem os braços, que lhe causam nódoas negras nas coxas, nos peitos, no rosto.
O seu corpo em movimentos bruscos, dizendo não.
Os soluços sufocados. As lágrimas.
O seu corpo inerte, cansado, despojado sob aquele corpo duro e pesado a que chama "marido".
O tempo a doer em cada parcela de si.
O prazer, a satisfação que ele, vitoriosamente, faz ecoar pela cama, pelo quarto, pela casa.
As garras que se cravam no corpo dela, que a abrem, que a desfazem, que expandem as fendas no que lhe resta da alma, enquanto ele, sentado sobre os lençóis, se deleita com um cigarro, esboçando um largo sorriso.
Ela devastada onde aparentemente jamais alguém poderia tocar.
Ela menos mulher.
Ele sentindo-se mais homem.

Há corpos destroçados que admiravelmente conseguem parecer uma coisa só.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

superlativo fantasioso

Foi a forma delicada e sensual como ela fez deslizar o baton sobre os lábios que lhe prendeu a atenção. O olhar abandonou a boca para apreciar depois o justo vestido vermelho que lhe delineava o corpo. Percorreu cada parcela daquela mulher, incitado a descobrir como seria possível transpirar tanta beleza sem se ser, porém, a mulher mais esbelta que os deuses poderiam edificar.

A subtileza com que se aproximou, as primeiras palavras proferidas, a construção do primeiro sorriso resguardaram-se nas entrelinhas da história. Mas os primeiros passos de dança seriam como dia de Verão, como toque do mar nos pés, como gelado em dias tórridos, como beijo sob a chuva. Envolvidos em acordes de blues, naquele apertado corredor do pub, ele fez os dedos deslizar-lhe pelas costas, enterrou a face no perfume dos seus longos cabelos negros, sentindo o sorriso dela roçar-lhe o ombro.  

Há amores assim. Nascidos da pausa de um viajante, germinados em corpos que tiveram um oceano de distância enquanto se faziam homem e mulher, capazes de viver para além da morte, ainda que a morte possa ser o fim de tudo. Para esses amores a distância é simples problema. Basta-lhes um primeiro olhar para estarem certos que o caminho entre o querer e o ter se faz ao ritmo dos passos da paixão. E enquanto for essa quem os guia haverá desejo e fantasia a balançar na pureza daquele amor.

Trinta e um dia volveram até que se estilhaçasse o silêncio. Das mãos do carteiro ela receberia a primeira carta. "Há um manto de saudade indiscritível e soturno a cobrir as ruas, os espaços que habito. Falta-me a tua pele. Pede-me que parta." Nesse mesmo envelope, gasto da viagem, seguiu a resposta, escrita sobre o joelho: "A minha pele partiu contigo. Mas sinto mais a tua ausência do que a ausência dessa minha pele.".

A paixão não altera o ciclo dos rios, não move montanhas, não abre fendas na terra. Mas altera o ciclo das vidas, o rumo dos corpos, o bater do peito, o estado da alma. A paixão destes dois haveria de durar quanto o tempo o tempo considerou justo fazer jus ao medo da separação, ainda que o tempo do relógio tenha injectado brandura quanto baste neste sentimento inflmado.

O avanço cronológico trouxe as rugas, as mãos cansadas, os olhos encovados, os cabelos brancos. Apesar de fracos os corpos, forte era o entrelaçar dos dedos, como se adivinhassem que o marco temporal que limita o sempre estivesse próximo. Eles sabiam-no, mas viviam cada minuto dos dias algemados à crença de que estavam enganados. Doce sedução esta, a da mentira, quando há tanta verdade na ilusão. São ordens ditadas pelo amor, diriam os mais sábios.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

sr. ninguém

Quinze anos é muito tempo. É demasiado tempo para aqueles que perderam a existência. Mas ainda que o tempo corra milhas no calendário, jamais a imagem do retrato de família que carregava na carteira gasta lhe vai abandonar os olhos.

Na memória recente ficou-lhe preso o odor que viajou do corpo de uma mulher até si. Aquele mesmo perfume colado à pele da mulher com quem dormira tantas e tantas noites. Ele percorreu os seus leves passos até que o olhar não mais a pudesse encontrar, incapaz de fazer mover os lábios a fim de desfazer a dúvida que o atormentava.

O tecto que o resguarda não é palpável. Não é imune a tempestades ou ao calor intenso. Noites há em que as telhas são bordadas de estrelas. Outras em que se cobrem de um manto de nevoeiro. A lua ora se esconde ora se deixa mostrar, assim despida, completa, luminosa. Ele diria, se a existência não fosse tão apagada, que não há maior companhia do que a lua de uma noite de Verão. Talvez porque, na verdade, ninguém para além da natureza o quer acompanhar. Ele próprio gostaria de prescindir da sua companhia.

A sua imagem espelhada nos vidros de montras luxuosas é repelente, monstruosa, capaz de provocar arrepios nos dias mais quentes. E, no entanto, todos passam por si alheios à imagem, ao cheiro, ao rosto destroçado, ao corpo destruído.

Fez destas escadas a casa enquanto o dia lhe oferece luz, mas assim que a escuridaão começa a invadir as paredes, ergue o corpo e obriga-o a cumprir a jornada diária.

Uma rua

Outra rua

A busca

O frio

O nada

A tentativa de encontrar algo que lhe sirva de colchão. A tentativa de encontrar algo que esconda a sua não existência do mundo.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

prazer - 1 amor - 0

Queria um amor platônico, mas raras vezes o seu corpo obedecia às ordens da alma. Atirava-se majestosamente aos desejos da carne, insatisfeita na maioria dos casos com o que o amor tinha para lhe oferecer. O rosto masculino pouco interesse lhe suscitava quando a vontade a invadia. Comandada pelo prazer momentâneo e fugaz, mas poderoso, buscava de forma cega corpos carregados de testosterona como se de uma missão se tratasse.

Possuia os homens até à sua exaustão, até que o sangue quase lhe explodisse as artérias, até ao exacto momento em que o pensamento fosse abafado pelo deleite sexual. Adorava a sensação provocada pelos corpos extenuados, estendidos sobre os lençóis enquanto tentavam recuperar os níveis normais de ar nos pulmões. Assim despida a liberdade era tão abismal. E, no entanto, havia uma insatisfação, um vazio tão enorme que a consumia.

Pedem-lhe apenas que se dispa e abra as pernas, esquecendo que é o seu eu que ela gostaria de ver despido. Peça a peça, sem jogos de sedução à mistura. Apenas o simples prazer da descoberta. Mas esse é um jogo que exige tempo e num mundo de tempo escasso as jogadas são feitas sobre os lençóis.

Abandonara a aldeia ainda antes de cumprir os 18 anos, como que fugindo à inércia. Fascinava-a o trânsito caótico, as multidões, o stress diário provocado pelo movimento urbano. O seu corpo fora toldado para um mundo assim, portanto jamais regressou ao verde do campo. A beleza acompanhou-a, o sucesso também. Mas o amor pareceu negar-se a realizar essa jornada ou ter-se-á camuflado de forma perfeita num desses corpos que a habitou, simples visitante das horas vagas.

O gozo serviu-lhe de distracção até ao dia em que o prazer perdeu a pele de evasão/compensação que o cobria. E o seu mundo pareceu desmoronar-se como um simples baralho de cartas. Faltava-lhe o amor. Faltava-lhe a paixão nas camas onde se deixava despojar.