quarta-feira, 12 de outubro de 2011

a vida que dói sem dor

O mundo é-lhe um outro mundo a cada instante. O mundo será, porventura, o mesmo mundo, cansado e repetido, em todos os seus minutos. Desconheço porém se mundo haverá num corpo de homem que deixou de ser homem para ser simplesmente corpo.

Saberia dizer exactamente o tempo em que o cérebro lhe deixou as palavras agrafadas na garganta. O tempo em que os olhos se transformaram em espelhos baços de quem não tem alma, senão um vazio cinzento, de quem se viu desconstruído na construção interna que o cérebro não foi capaz de manter. Mas contar um tempo que já não deve ser contado, senão em momentos, parece desprovido de sentido. Contam-se as vezes em que o olhar dele se fixa nos meus olhos, como se naquele instante eu fosse carne sua e me soubesse seu filho. Registam-se os sorrisos de quem momentaneamente terá recordado os empurrões suaves no baloiço do jardim rodeado de gargalhadas infantis e promessas adultas. Regista-se a vida, o tempo em que a vida parece viva num corpo preso a uma existência deambulante inerte.

Dou-lhe a mão e regressamos a casa. Conto-lhe ininterruptamente cada uma das histórias da história que somos, esquecendo a ausência em que o silêncio o transformou. E vejo-o caminhar como se caminhasse numa estrada infinita feito homem inútil que espera o térmito não o sabendo esperar.

Somente aquele cigarro o parece manter amarrado à existência. Como se uma parte autónoma de um corpo dependente se prendesse à necessidade de um vício que não adormece nem morre.

A doença de Alzheimer levou-lhe a alma por inteiro. Resta-lhe a carne. Resta-lhe a paz do nada e a incompreensão inexistente manifestada quando a palavra era voz. Resta ele, o calor de um corpo, o cheiro, o toque. Resta-me ele e isso basta.