quinta-feira, 29 de setembro de 2011

do amor que deixa nódoa

Foto: Mila Lippitz

Julguei-me doente. De uma dessas doenças incuráveis, que parecem assassinar todas as vontades, inclusivé a de ter esperança. Julguei-me mais tarde uma louca. Não porque a insanidade me destruísse a dependência e a racionalidade, mas na verdade porque a insanidade emocional que atravessava todo o meu corpo me deturpava o mundo, moldando-o à sua maneira, à maneira idílica, feita dessas perfeições amorosas que a própria perfeição reconhece ser impossível. Foram várias as vezes, incontáveis vezes as vezes em que me julguei culpada. Culpada por não saber amar, por não saber como amar, quando amar, quem amar.

Tornou-se insuportável. Como uma torre a desmoronar-se para dentro de mim. O coração prestes a explodir, de artérias bloqueadas, esmagado contra o peito, o desejo a alastrar-se como fogo, o amor como alimento fantasma e o vazio. O vazio interno de quem sabe de cor um não gritado sem palavras. Quantas vezes ansiei abandonar o amor numa dessas ruelas onde ele pudesse sentir na pele a dor muda que nos dispara. E ele de mãos entrelaçadas num jogo de brincar entre dedos de quem se sabe uma necessidade absoluta.

Mergulho nas águas gélidas de Outono, como se de certa forma acordasse este corpo de uma realidade que o atravessa e não lhe pertence. Como se estas águas frias e plenas de pureza possam rasgar este sentimento de não pertença, possam lavar uma alma suja que tece crítica em torno do maior dos sentimentos, possam, enfim, massajar esta mágoa dura que se alastra pelos tecidos enquanto o dia rompe por entre a folhagem castanha de estação entranhada. Está sol e eu sou feita de carne.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

despedida

Trazia aquele perfume. Inebriante. Perfume de dejá vu. Perfume do corpo que carregava aquele vestido vermelho atrevido nos seus movimentos de seda fina que roça a pele e me atormetava a racionalidade de macho seguro. Perfume do dia em que cravaste os olhos nos meus e me fizeste presa. Perfume que carregaste no dia em que te despediste de mim, levando-me, porém, contigo. Sabe-lo-ás?

O pôr-do-sol a deixar-te em contraluz, a tua silhueta leve a arroubar-me os sentidos, envolvidos por aquele laranja quente de fim de tarde de Verão. Não tínhamos palavras. Na verdade, não existiam palavras certas, suficientemente profundas ou esclarecedoras que pudessemos usar. Deixámos apenas que o som das gaivotas naquele longe tão próximo e o roçagar da água fossem o todo que desejávamos reter. Os teus dedos entrelaçados nos meus, amarrados, receosos; o sorriso frágil banhado pelo poente dizendo-me adeus; os olhos mergulhados de tristeza a cravarem-se-me no peito. Evitámos o abraço, como forma de evitar as lágrimas, como meio de evitar o buraco que inevitavelmente se abriu ali.

Dias houve em que tudo quanto ansiei  se resumia a ver-te longe. De mim, da minha memória, dos meus sonhos, dos meus tormentos e dúvidas. Dias houve em que tudo quanto representaste não foi mais do que uma dor que se atravessava insistentemente no meu caminho. Esquecemos continuamente que a cedência do corpo é mais do que uma cedência carnal, que separar o eu racional do eu emocional é falha humana instituída e incontrolável. E sabendo à priori que a saudade se acercaria de mim como uma carraça, permiti-te.

O perfume. O teu perfume rodopia ininterruptamente entre estas árvores, na língua do sol, na brisa que as asas das gaivotas fazem correr. Pessoas há que jamais partem. Nem o tempo nem a vida as levam. Continuam presas entre as artérias, entre os dedos, entre os lábios, no tronco e em cada parcela que nos tenha deixado.