quinta-feira, 11 de novembro de 2010

homem silêncio

Aquele recanto pertence-lhe. Foi o tempo quem o ditou. Dia após dia, sem espaço para ausências, aquela cadeira é ocupada por aquele homem. Deixaram de se contar os anos ou as horas que ali permaneceu. Inicialmente limitava-se a saborear um café e a deliciar-se com um único cigarro. Nos dez minutos seguintes fixava um ponto e perdia-se num mundo que só ele era capaz de visualizar. Mas um dia, um daqueles dias que ninguém regista no calendário, ele fez daquele espaço o seu casulo. Era o primeiro cliente a sentir o cheiro torrado e quente do café acabado de fazer e o único a estar presente no fecho das contas. Não proferia nenhuma palavra para além das necessárias aos pedidos e, no entanto, todos sabiam que ele respirava palavras. Após uma leitura intensa dos vespertinos, abria uma espécie de dossier e enchia a mesa de folhas. Pequenas ilustrações a sépia aqui, palavras soltas por ali, folhas limpas e brancas ainda por rasurar, num lote estrategicamente disposto do seu lado esquerdo, e uma caneta, uma mesma caneta que se assemelha a uma amante.

Apelidaram-no de homem silêncio. Um corpo ausente que, à medida que se riscavam os meses no tempo, se transformava cada vez mais em matéria daquela mesa. A sua vida era um vácuo, uma incógnita aos olhos dos demais. Mas jamais alguém se atreveu questioná-lo. Não o conhecem porque as suas palavras são a sua imagem. O homem silêncio é, na verdade, um reconhecido escritor, mas nunca apresentou o seu rosto a par dos seus livros. Refugia-se num pseudónimo e esconde-se num local perdido no interior do mapa nacional, para onde se mudou contam-se já quinze anos. É o seu refúgio, uma forma de fintar a fama.

As palavras surgiram tarde na sua vida. Usou-as aos trinta anos como sua salvação, como único meio de expressão e, sobretudo, como escape da dor quando a morte lhe levou o amor. No dia em que a perdeu atirou as suas memórias e o que restava da sua vida para o interior de uma mala gasta e partiu. A fuga levou-o até uma ilha isolada, para um recomeço que ele visualizava como o fim, para meses de angústia e sofrimento, para um labirinto emocional onde se sentia encurralado. Foram as palavras quem o salvou. Foram as palavras  quem o despertou. Foram as palavras escritas sobre a morte e o amor que fizeram nascer o seu primeiro romance, que fizeram nascer o escritor.

A dor jamais o deixou, jamais o deixará. Ele sabe-o. Sabe que essa dor se cravou na pele, que o perfurou até ao interior dos seus ossos. Mas reconhece que essa mesma dor é o ingrediente principal das suas estórias, o motor do seu eu. Vive com ela, vive graças a ela.

Dez anos volveram desde que aterrara naquele pedaço de terra quando o decidiu abandonar. Foi de novo o amor que o levou a partir. Exactamente no momento em que percebeu que a paixão ia regressar aos seus dias, exactamente quando o seu coração voltou a bater, partiu para Portugal. A alteração geográfica não repercutiu qualquer mudança na sua vida. Só os cheiros, o clima e a paisagem se diferenciam. Perdeu a beleza do oceano, ganhou a magnitude das montanhas. As palavras permanecem. Continuam a surgir em torrentes incontroláveis, a encher páginas, a formar estórias, a serem alimento da alma de tantos. Ele vai permanecer naquele recanto. Ali vai continuar a dar a sua vida à literatura, a recusar dar o corpo ao amor. Aquele recanto pertence-lhe. Pertencer-lhe-á até ao dia em que a paixão o obrigue a uma fuga não planeada, mas obrigatória.

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