quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

(des)construção

Eu não existo. Sou um ser vivo deambulante que deixou os sonhos numa ruela, encerrados num saco preto que apertei de forma veemente de forma a que nenhum gato ou cão abandonado os possa libertar. Sou um daqueles corpos que deixou de saber como viver os momentos, permitindo que os momentos decidam como devem ser vividos. Sou matéria flutuante num mundo feito de rochas laminosas onde me deito noite após noite.

Os meus olhos não sabem mais o que vêem, talvez por não saberem aquilo que querem ver, talvez por não saberem aquilo que devem ver, talvez por não haver nada mais para ver. Mas sou um corpo cuja brisa ainda toca o coração, que vive sob a chuva e sob o sol com a mesma intensidade, uma intensidade que não deve ser imposta pelas estações ou temperaturas que o tempo nos atira.

Não há passagem do tempo ou morte, apenas uma existência inerte, aberta aos desejos dos outros, ineficaz no cumprimento do amor, eficaz no cumprimento do fingimento. Sou, enfim, este corpo que diariamente se prosta a sentir o toque da madeira deste banco gasto e se regozija simplesmente em olhar o mar, sem dar uso à razão, ignorando a emoção, dizendo não àquilo que as ondas me dizem.

Sou um corpo a balançar no querer. Um corpo que hoje quer esquecer o ontem e pouca importância pretende dar ao amanhã. Sou assim, simplesmente, indecifrável, inexplicável, o que na minha permanente (des)construção é uma identidade sem base, uma escultura inacabada esquecida num atelier qualquer.

Sou, na verdade, o fruto de um coração que se partiu vezes sem conta e que de tanto se quebrar deixou pedaços abertos. Mas a real verdade, se me perguntarem, é que sou um nada querendo ser tudo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

palavra maligna

Trazia os exames de rotina dentro de um saco gasto de outros exames e esperava num corredor branco entre muitos outros pacientes. Nomes desconhecidos a serem projectados pelas colunas de som, queixas partilhadas, portas que se abriam e fechavam e aquela espera incessante. Tinha um compromisso importante. Não podia esperar. Mas a espera teimava em prolongar-se, arrastando os ponteiros do relógio.

O gabinete para onde o encaminharam ficava no fundo do corredor, mesmo de frente para a saída. No interior havia duas cadeiras visivelmente desconfortáveis, utensílios médicos espalhados por pequenas mesas e livros onde o pó se havia instalado. Ele distraía a atenção, enquanto o envelope que um outro médico lhe entregara com carimbo urgente era rasgado. Não era a primeira vez. Provavelmente teria de voltar a tomar os mesmos medicamentos, voltar a ter os mesmos cuidados com a alimentação, ouvir aquelas mesmas recomendações. Não era a primeira vez.

Não via de forma perceptível o rosto do médico. O sol incidia fortemente nas janelas por detrás da sua imponente cadeira, deformando-lhe os contornos. Subitamente, viu formarem-se pequenas rugas de preocupação em torno dos olhos do homem à sua frente. A testa franziu-se, o olhar focou. Enquanto ele, inexplicavelmente hirto, via a cabeça do médico percorrer por várias vezes a carta, do topo até à última linha. Depois olhou-o fixamente. Ele esperou.

As palavras surgiram primeiro pausadas. "Cancro" ... "Terminal" ... Depois em torrentes quase descontroladas. "Quimioterapia" ... "Não desista" ... "Radioterapia" ... Ele não percebia. Ele precisava apenas de mais medicamentos, de grelhados, de não exagerar  no sal. Que palavras eram aquelas? O corpo começava a perder os movimentos. O suor, a pele a estalar, o peito a abrir-se, as veias a esvairem-se, o cérebro a agitar-se, a tentar entender, a vasculhar cada memória, cada possibilidade de ver como uma mentira todo aquele momento.

"Cancro", a palavra ecoada vezes sem conta no ar. O medo a alastrar-se por cada uma das suas moléculas e os lábios do médico que não paravam de se mover. Que silêncio era aquele que o impedia de ouvir? Que angústia era aquela que lhe prendia a língua? Que palavras eram aquelas que lhe cortavam os membros? E aquele cheiro indecifrável a hospital que lhe retorcia o estômago.

Ele precisava sair daquela sala, correr todo aquele corredor até encontrar a saída. Tinha a morte a baloiçar frente ao olhar e, no entanto, os músculos não reagiam. "É, então assim. É assim o fim", pensou. Recostou-se na cadeira e durante um largo momento permitiu que o silêncio se apoderasse de si.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

estupro do eu

Era a noite quem ela mais temia. Não por recear a ausência de luz ou a repentina quietude que habitava os recantos daquela casa. Não. Era exactamente aquele momento em que a rua se rendia ao silêncio, em que o mundo parecia estagnar. Aquele momento que abria as portas ao medo. Entranhava-se no seu tronco como o frio do Inverno se entranha nos corpos. Perfura a roupa, infiltra-se nos poros, contamina todo o sangue, até que, por fim, se instala no coração, como mortífero vírus. O medo que a impede de fechar os olhos, de retirar o olhar da porta da entrada. O medo que lhe faz o coração saltar contra o peito, querendo quebrar cada um dos seus ossos.

Até que o silêncio é cortado pelo ranger frio da fechadura e pelos passos pesados daquele homem sobre os tacos soltos do corredor.

Os passos ainda lá ao fundo.
O bater descompassado do seu coração.
Os passos a aproximarem-se e o seu peito a ser esmagado.
Os passos a entrarem no quarto e o corpo a querer explodir.
Os passos frente à cama, acompanhados do cheiro a tabaco embebido em whisky, e o cérebro a gritar contra o crânio.
"FOGE".
A palavra a empurrar-se contra a pele, a palavra em órbita. A palavra sem acção.
O corpo dele sobre ela, a rasgar-lhe as vestes, a atirar-lhe palavrões para a face.
As mãos que lhe prendem os braços, que lhe causam nódoas negras nas coxas, nos peitos, no rosto.
O seu corpo em movimentos bruscos, dizendo não.
Os soluços sufocados. As lágrimas.
O seu corpo inerte, cansado, despojado sob aquele corpo duro e pesado a que chama "marido".
O tempo a doer em cada parcela de si.
O prazer, a satisfação que ele, vitoriosamente, faz ecoar pela cama, pelo quarto, pela casa.
As garras que se cravam no corpo dela, que a abrem, que a desfazem, que expandem as fendas no que lhe resta da alma, enquanto ele, sentado sobre os lençóis, se deleita com um cigarro, esboçando um largo sorriso.
Ela devastada onde aparentemente jamais alguém poderia tocar.
Ela menos mulher.
Ele sentindo-se mais homem.

Há corpos destroçados que admiravelmente conseguem parecer uma coisa só.