quarta-feira, 27 de julho de 2011

amor maior

Havia chegado o dia e a hora. Aquele dia que o corpo preparara desde que há vários meses atrás começou a ganhar forma, a desenvolver vida, a sentir que parte de si, que grande parte de si, era aquilo, aquele pedaço seu que crescia semana após semana e lhe tocava as entranhas, lhe pesava deliciosamente, que a fazia sentir uma outra, sem saber que outra, mas sabendo que era uma outra melhor, com mais força, com mais vontades.

Havia chegado o dia e a hora e ela preparava-se ansiosamente, com o coração preso na boca, com o coração preso em cada fragmento seu, para o momento. Respirar pouco a pouco aquele amor que se queria soltar, que a queria deixar para se transformar em algo maior, em algo visível, em algo palpável. O corpo a rasgar-se e ela de sorriso na boca de satisfação. As mãos que a abriam e o sorriso que se mantinha. As mãos no seu interior a revolver cada pedaço seu, a tocar nos seus órgãos, como se remexe num saco à procura da melhor guloseima, e ela de sorriso na face.

Aproximava-se a hora, aquela hora. O sangue a correr por entre as toalhas, a escapar-se até tocar o chão e o sorriso a chegar-lhe aos olhos. As mãos que não paravam a busca e o sorriso a querer apoderar-se de todo o corpo dela. As mãos que tocam algo, sabendo que é aquilo que buscam, sem necessidade de visão, repletas de prazer pelo toque, pelo simples toque, o primeiro toque. As mãos que puxam e o sorriso a querer invadir toda a sala.  

De entre um corpo aberto, rasgado, eis que algo em forma de circunferência surge. Lavado em sangue e matéria do corpo, é puxado do corpo que o formou. E, de repente, num escasso segundo, ele surge, de corpo assustado entre tremores. O sorriso apodera-se de todo o edifício, faz rebentar o corpo dela e a sala. Tão fortemente, tão tremendamente poderoso que eis que as lágrimas se soltam, abundantemente, enquanto lhe cortam a ligação física com aqueles corpo frágil.

O peito a rebentar de amor, a soltar-se inexplicavelmente por cada poro, por entre os pedaços de dor. O não saber como o explicar, como se dizer o que se sente, como se o sente, que sentir é aquele de um corpo frio sobre o corpo quente dela. O não saber nada e sentir que se tem tudo, que se é tudo, que ele é tudo. A palavra, a tal palavra que desde o primeiro mês lhe chegou aos ouvidos é agora palavra tocável, quente, plena de prazer, sorriso autónomo, lágrima de paixão eterna. Ela é mãe.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

chegada

Ruas, ruas, mais ruas, rostos que surgem para rapidamente desaparecer, risos, metades de palavras atropeladas pelo fim de outras, o som distante das ondas a embaterem contra a areia que rompe pela janela entreaberta e a música que parece querer rasgar as colunas do carro para se soltar no vento que choca no meu cabelo e faz esvoaçar a carta sentada a meu lado. Quilómetros e quilómetros em estradas ao acaso, uma busca desconcertante de um lugar que não descobri mas sei existir. Há uma sensação extasiante de paz quase a consumir-me. Um sentimento pacificador de plenitude a entranhar-se-me no peito.

O riso a ritmo claramente inocente ecoa-me pelo cérebro. Solta-se das minhas memórias para se espalhar em mim e se evidenciar orgulhosamente no sorriso que esboço inconscientemente. 7 de Maio. A palavra "papá" a sair-lhe da boca, a repetir-se vezes sem conta perante os meus aplausos. Preciso encontrar esse lugar. O tal lugar. É matéria espiritual. Ela é matéria espiritual. Não. É corpo. Foi corpo. Será sempre corpo. Está numa casa com jardim e piscina. Ela adora água. Está sentada no chão do quarto de paredes rosa, a brincar com os cabelos das bonecas. Talvez lhes esteja a fazer tranças. Certamente. Tranças. Largas. Em cabelos compridos e ondulados. Como os dela. Como o mar. Continua a sorrir. Ela está a sorrir. Sabe-me perto dela sem o estar, não sendo necessário estar para que ela me saiba presente.

Mais quilómetros. O sol a lamber o mar com a sua longa língua alaranjada exposta desde o horizonte até ao areal. Costumávamos fazer castelos de areia molhada e pesada, a colar nas suas pernas, a envolver-se nas pontas dos seus cabelos.

Estou mais próximo. Sinto que estou mais próximo. Sei que estou mais próximo. A saliva abunda-me na boca, entre os pedaços de coração que se entranham nas glândulas e me fazem remexer o estômago. Estou mais próximo. Ouço-a rir. Cada vez mais alto. Como no dia em que se olhou ao espelho e julgou-se outra. A cama estava vazia quando a fui rever. Os lençóis puxados para trás, a almofada que ganhara a forma do seu crânio, o peluche abandonado contra as traves de madeira. Levaram-na. Não. Ela está na sala a dar os primeiros passos agarrada aos móveis como se fossem mãos. Estou mais próximo. Sim. Muito próximo. O cano do revólver contra a minha espinha perdeu a frieza. Começa já a penetrar a minha carne. A bala começa a desejar fortemente saborear a minha massa encefálica, penetrar as minhas memórias e aí repousar. Sim. Os meus dedos querem tocar o gatilho. Ela continua a sorrir. Sabe que estou próximo. "O papá está a chegar, filha." Já sinto o cheiro dos cabelos dela nas minhas narinas. Sorrio. É aqui. Sim, é este o lugar. O vento dá lugar à brisa. O sol é engolido pelo mar. Os pés tocam a areia. As ondas rebolam praia fora. Sim. É aqui. É esta a hora. Pego no revólver. Sorrio. Coloco o polegar no gatilho e o cano contra o crânio. Cheira a mar. Sorrio largamente. "Querida, o papá chegou." Vejo-a abrir os braços. Primo o gatilho.