sexta-feira, 19 de novembro de 2010

fragmento de guerra

Costumava fumar lentamente. Sentava-se na paragem do autocarro, fizesse chuva ou sol, e ali ficava horas a deliciar-se com as expressões dos condutores que ali passassem. Cansado, porventura, dos rostos inexpressivos, mudou-se para o meio da rua. Agora, mais do que o erguer da mão gosta de puxar da palavra. Mas ninguém lhe dedica mais do que dez minutos de conversa. Temem que o seu diálogo termine nas suas lembranças.

A culpa não é dele. Não foi uma escolha. Foi uma ordem que lhe mudou a vida. Chegou estampada numa carta, de discurso perfeitamente organizado, feito quase na totalidade de palavras que ele desconhecia. Encontrou a carta nas mãos da esposa, quando numa tarde quente de Verão regressava do trabalho. Ela, de olhos cravados na folha branca, apenas conseguiu dizer "não vás". Ele não precisou, então, das palavras contidas naquela carta para perceber o pedido.

Partiu em 1961 para combater em Angola. Tinha o medo enterrado no peito, a perfurar-lhe cada parcela da sua masculinidade e, no entanto, exibia um vistoso sorriso de quem se orgulha de servir a sua pátria.

Uma bala fá-lo-ia regressar um ano depois. Mas ele não vinha só. Trazia os combates, os mortos, os gritos presos à pele, prontos a aí permancer enquanto a vida se prendesse a ele.

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