quinta-feira, 4 de novembro de 2010

amor sem título

Era Domingo. Corria uma leve brisa e tombavam das árvores as primeiras folhas de Outono. Em certas zonas daquela localidade sentia-se já o cheiro a lenha queimada a escapar pelas chaminés. Era dia de festa da Sra. da Assunção. As ruas estavam bordadas de papéis coloridos e pétalas de flores, que formavam imagens distintas ao longo do caminho. No interior das casas preparavam-se as melhores iguarias, enquanto sobre a cama aguardavam as melhores vestes, escolhidas especialmente para este dia. O ouro foi retirado das caixas, o cabelo arrumado num impecável penteado.

O povo ia encontrar-se numa mesa estrategicamente colocada no centro da aldeia e, portanto, os corações jovens estavam acelerados. Diziam os mais velhos que no dia da Sra. da Assunção o amor saía à rua para tocar os corações abertos à paixão. A Amélia ria sempre perante a afirmação, descrente de lendas sem conteúdo factual. Contudo, quando ele se sentou frente a ela naquela longa mesa, Amélia julgou que o seu conhecimento era inútil. Há leis impostas pelo amor às quais estamos condenados. Ela não percebeu no imediato o que estava a suceder com o seu corpo. Tinha o olhar preso àquele homem, como se a tivessem acorrentado, e o peito em sufoco. Havia uma vontade incontrolável no seu interior de o tocar, de comprovar a sua real existência. E, no entanto, sentia-se incapaz de movimentar qualquer um dos seus membros. Ele percebeu. Sorriu triunfante e estendeu-lhe a mão. "Sabia que te haveria de encontrar. Sou o Pedro", disse-lhe.

Foi no dia da Sra. da Assunção que Amélia conheceu Pedro. Foi no dia da Sra. da Assunção, volvidos 365 dias, que subiram ao altar. Esta é a estória de amor de Pedro e Amélia, uma estória na qual a barra cronológica pouco ou nenhum peso parece ter. Cinquenta anos volveram, mas as suas almas, mais do que os seus corpos, continuam inseparáveis.

Ele descobriu que tem Alzheimer. Nada mudou. Apenas o medo surgiu nos dias, batendo levemente nas suas costas sempre que olha Amélia. O seu maior receio é esquece-la, é perde-la na fuga das recordações, imposta pela doença. Ele deseja morrer, como forma de vencer as consequências da patologia, mas não o revela. Antes de partir pretende colocar num caderno o que a vida não deve apagar, para que Amélia saiba que o amor sai, de facto, à rua. Ele sabia que haveria de o encontrar. Ele sabia que haveria de encontrar o amor. Encontrou-o no corpo de Amélia.

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