domingo, 5 de dezembro de 2010

máquina do tempo

Era madrugada. É a única indicação temporal que ele pode apontar para que o seu eu se localize, ainda que meio incerto, no recheio desta estória de amor. Estória de amor talvez seja um título demasiado pomposo, desajustado, talvez, mas é reconhecido que a consciência não tem soberania no que aos sentimentos diz respeito. Os dois campos - psico e emocional - presos num corpo só não se deixam cruzar, para evitar que os tecidos da alma sofram choques intensos contra as paredes do coração. Mas não nos percamos nos trilhos da filosofia. Importa aqui saber e deliciarmo-nos, sobretudo deliciarmo-nos, com as palavras que envolvem aquela paixão, manifestada num simples olhar durante uma despedida.

Ele viu-se forçado a não projectar qualquer emoção naquele acto de desunião. Na verdade, obrigou o seu cérebro a manter um sorriso constante, em certos casos a mostrar inclusivé os dentes desalinhados, por imposição dos anticorpos desenvolvidos em tempos remotos, em situações algo semelhantes. Mas ela pareceu paralisar enquanto segurava a mão dele e perscrutava os seus olhos. Ele continuava de sorriso aberto, enquanto sentia cada pedaço interior ser flagelado por mãos invisíveis. Seria o seu coração a desfazer-se, porventura. Porém, ali estava ele a exibir aquela falsa felicidade castradora e escrupulosa. Ninguém, para além dele estava convencido da sua ventura. Mas ele só o percebeu quando o sabor a sal lhe invadiu os lábios. Sim, eram lágrimas, em torrentes quase descontroladas, que manchavam a sua face.

Não existiram palavras - engano seu quando o referiu -, apenas aquele silêncio castrador colado ao vento. O silêncio e o abraço. É tudo o que recorda. O avião esperava na pista, de portas abertas, enquanto avisos ecoados pelas colunas de som recordavam que a porta de embarque fecharia a qualquer momento. A mensagem que os seus ouvidos não conseguiam fazer calar. Aquele aviso que, camufladamente, lhe recordava que ela tinha de partir. Não haveria um regresso, ele sabia-o.

Os braços dela começavam a desprender-se do seu corpo, sentia-o. Por momentos teve a impressão de que havia regressado à adolescência, àqueles dias de fim de Verão que lhe roubavam os amores nascidos nos areais, entre as ondas gélidas da costa Norte. Até que os braços se soltaram por completo e tudo pareceu, a seus olhos, mover-se numa espécie de câmara lenta. O corpo dela a recolher aquela mala, gasta pelas noites passadas na rua, o contraste com a roupa limpa que exibia, os beijos dos amigos, o beijo colado nos seus lábios, a sua inércia desajustada enquanto ela se afastava. E ele estupidamente preso numa epécia de bolha surreal, julgando que aquele momento não era mais do que um pesadelo.

Terá sido instinto. E juntemos-lhe um outro substantivo: impulso. Movido por um sentimento que até ao momento desconhecia correu na direcção dela. Correu, tendo a impressão de que se abria uma espécie de corredor à medida que o seu corpo acelerava o ritmo da corrida. Ele queria apenas voltar a sentir a pele quente dela contra a sua. Ele queria apenas os dedos dela entrelaçados nos seus. Ele queria apenas sentir a sua alma despida frente ao olhar dela. E, por isso, correu, como se a sua vida dependesse desse movimento feito naquela noite de nevoeiro trazido pelo Inverno.

A lembrança corre-lhe o pensamento a cada minuto do dia. É verdade que o seu corpo quase se perde entre os objectos que enchem a rua. Mas a verdade é que ele não está ali. Está preso àquele momento. Está preso àquele outro corpo.

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