quarta-feira, 29 de maio de 2013

omnipresença


Dentro de mim, na minha imaginação, faço-te real. Aproximo o rosto de ti e sinto-te o cheiro, entrelaço os dedos nos teus e pouso a cabeça no teu peito. A cabeça e todo o corpo em ti sentindo-te o sorriso que me roça a pele, de quem se sabe nós, porque não se abandona o que nos torna imensos na vida. Não criamos resistência quando sabemos que queremos, simplesmente pelo querer.

Hoje quase tive um acidente. Detive-me hipnotizada a olhar um carro igual ao teu, convencida de que eras tu. Pareces-me sempre tu. Tu multiplicado por mil dentro e fora de mim. Um dia destes ainda me mato por tua causa. Imagina se te encontro! Eu que não sei o que é amar o que farei ao coração e às mãos quando te olhar de frente com este desejo imenso de te tocar? Queres que te explique melhor? Não sei se existirão palavras suficientes que transponham para o campo da compreensão aquilo que nem eu mesma entendo. Não sei se existem palavras onde caiba tudo o que sinto dentro. É tão simples e eu sinto tudo cá dentro tão complexo. Está-me debaixo da carne. Como tu.

Parei o carro no meio da auto-estrada, os quatro piscas ligados, o corpo que não parava de tremer. Queria ligar-te, dizer-te que és um cabrão e que te odeio, mas haveria de te dizer outra coisa que não significasse isto, porque o significado do que sinto não é isso. Falar de coração na boca faz-me outra e eu não posso ser outra enquanto tiver o coração na boca. Nunca gostei de me sentir outra a não ser que pareça outra porque assim quero. Quanto prazer há nisso.

Caminho pela rua, há um homem que carrega o teu perfume e julgo-te tu. Dirias que estou louca. Traz o teu sorriso, as mãos cravadas nos bolsos, o corpo a balançar dessa mesma forma. Como tu. Talvez fosses tu. Devo estar mesmo louca. Ainda morro por tua causa. Mas, não. Não te deixes enganar. Eu não te amo. Quero-te. Não confundas os termos. Cá dentro és o que quero que sejas e eu não amo. Quero-te tremendamente nesse prazer lascivo de te ter preso a essa liberdade desconcertante em não amar. Amo em parcelas e isso basta-me.  Dias há em que o teu corpo dentro da minha cabeça me é suficiente. Esta noite mantenho-te assim. Amanha também. Talvez.

Dou por mim em plena auto-estrada de mão pregadas ao volante, os carros a ultrapassarem-me velozmente, por te julgar ver. Porque razão me hás-de tu perseguir em corpos que não são o teu? Diz-me se estou doida que esta coisa que trago dentro ainda me há-de matar. Não porque te ame, mas porque pareço outra que não sou. Precisarei dizer-te isto? Não saberás tu que assim é? Não sabes que me és pela forma como te olho olhos dentro do corpo? Isto digo eu que não sei nada sobre a vida. Sei apenas o que me faz feliz.

Coloco o pé de novo no acelerador e sei-te comigo. Na minha imaginação estás sempre, quase sempre, comigo. Mas, sabes, não venhas devagar que a vida corre depressa e eu tenho vontade de partir e pressa de chegar.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Lisboa vestida de cinza


Sempre tive uma paixão secreta por Lisboa. Em tempos ansiei habitá-la. Tive essa ânsia de capital, de ser parte dessa massa de gente que se atropela rua fora, sem entender muito bem que motivos se escondiam nesse desejo. Hoje enquanto a calcava e a olhava pelos vidros do carro, Lisboa pareceu-me gasta. Talvez esteja, à semelhança de tantas outras capitais deste mundo. Talvez seja a ausência de sol que não lhe é própria. 

Gosto-lhe, confesso. Ser grande dá-lhe caracter, enche-a de personalidade. Sinto, porém, falta disso que chamam de 'gentes', do calor que as pessoas do Porto emanam naturalmente. Sinto falta, inclusive, dos palavrões atirados 'à boca cheia'. Já não basta esta luz hipnótica de fim de dia. 

Sou uma mulher enamorada por Lisboa. Sinto-a sempre como se fosse uma dessas paixões arrebatadoras que se querem saciar imediatamente. Mas deixo sempre o coração no Porto.  E aos grandes amores convém escapar-lhes de quando a quando, para que sintam a acidez da ausência. Escapo-lhe para lhe sentir saudade, porque voltar a um grande amor é sentir tudo como se fosse a primeira vez, sabendo antecipadamente o quanto se gosta. 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

um quarto branco no 25 de Abril


O quarto é branco. Os quartos dos hospitais são sempre demasiado brancos. Os espaços parecem ter cores que nos ferem os olhos. Sei que hoje é o 25 de Abril, que há discursos, filmes e manifestações, mas cá dentro não é dia nenhum. Ou é simplesmente um outro dia. Cá dentro está tudo demasiado calmo. O silêncio só é cortado pelas conversas das enfermeiras ali no fundo do corredor, por uma passagem curta de alguém por aqui para ver como está o soro e o corpo e regressa o silêncio. 

A rapariga que estava ao meu lado entra no quarto de sorriso aberto e diz que se vai embora. E quase lhe tenho inveja. Imagino-a a sair do hospital para longe destas camas e destes corredores e, sim, tenho-lhe inveja. Fecho os olhos e sinto o sol quente no corpo, ouço as ondas a embater na areia e o som das muitas conversas cruzadas e o quarto parece-me menos branco. 

Na parede para lá do meu quarto há grávidas que esperam. A ala da Ginecologia é possivelmente das mais felizes do hospital. Quase se sente no ar essa ânsia de quem aqui entra, a felicidade entre a respiração constante, o nervoso miudinho dos homens que esperam. E de repente já não há silêncio. Há um choro. Esse primeiro choro de quem acaba de chegar e dizer-se chegado. Sim, eu sei que é o 25 de Abril. Porque o 25 de Abril também é o choro de uma criança acabada de nascer. 

segunda-feira, 15 de abril de 2013

corpo casa


Amas-me sem nunca o teres dito, sem nunca me teres olhado directamente nos olhos, sem nunca teres desejado que ficasse permanentemente na tua casa, na tua cama. E, no entanto, amas-me com amor suficiente para uma vida. Como o sei? Sei-o de cada vez que me abraças. É nos meus braços, tendo-me nos teus braços que me desejas ter para sempre. Porque o meu corpo é a tua casa. O meu corpo é a cama onde te deitas.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

recuo aos 80

Frame de Pedro Magano
Apetece-me anos 80. Apetece-me entrar na máquina do tempo e regressar à infância. Apetece-me aquela ingenuidade simples e desculpável. Apetecem-me os arranhões de rápida cura, os beijos roubados atrás do palco. Apetece-me correr pela estrada e sentir o vento na face sem me preocupar com uma possível queda. Apetecem-me aqueles amores intensos na sua volatilidade, amores de brincar às casinhas durante o recreio. Apetece-me o mundo perfeito que os olhos inocentes conseguiam ver. Apetece-me ter título de criança.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

isso

Foto: lovetrains

Não me digas que me amas. Vem, simplesmente, dar-me a mão, abraçar-me, permitir que repouse a face no teu ombro, deixar que acredite por largos minutos que o mundo é este calor que emanas da pele, o perfume que sinto colado ao teu pescoço, o mar e o céu fundidos em ti. Vem que hoje não preciso das palavras. Preciso de ti.

segunda-feira, 11 de março de 2013

carta


Não te admires por ter fugido. Isso pertencia a ti e não a mim, é certo. Está-te nos genes surpreender-me com desfechos inesperados e inoportunos que me façam desejar o suicídio ao invés da dor de te perder vezes sem conta. És um cabrão, sabes. Talvez seja por isso que te amo. Não. Talvez não. É exactamente por isso que te amo. Soube-o no exacto momento em que te vi e foi precisamente isso que fez com que me atirasse sem paraquedas contra ti. Adoro cabrões por saber que trazem em si o amor explosivo, mesmo sabendo que são uma partida certa.

Nunca te soube meu. Quando achava que o eras mostravas-me logo que não. Raios. Acordar todos os dias com essa incerteza a encher-me o peito, essa incerteza de não te saber meu, esse receio de que a qualquer minuto do dia desaparecesses por completo quase me matava. E, no entanto, nunca me senti tão viva. Nunca o coração me pareceu tão acordado nem os sentimentos tão despertos. Por isso tive de te fugir. Antes que fosse tarde demais.

Cheiro a ti, sabes. Tenho a impressão de que ficaste impregnado nas minhas mãos, de tanto te ter tocado, pela forma como te abraçava contra mim para que não partisses. Raios, o teu cheiro deixa-me louca. Não deves entender tudo isto. Quiçá entendas. Não me importa se entendes ou não. Na verdade, importa-me. Queria ficar-te colada na pele. Queria que todo este eu, o meu cheiro, os meus cabelos ficassem nesse quarto, que jamais desaparecessem, que inundassem o espaço de cada vez que colocasses uma outra mulher sobre esses lençóis onde fomos. Sei que me amas. Amas profundamente, mas tens medo de me amar. Não deverias ter medo. Eu precisava que não tivesses medo para não ter de fugir de ti. Mas é tarde demais.

quarta-feira, 6 de março de 2013

ponto final


Na vida dela havia apenas esquecimento. Empurrava uma memória atrás da outra para um saco sem fundo como se se prendesse num baloiço e se deixasse empurrar fortemente, esticando os pés contra o céu e a cabeça a roçar a areia. Esse desejo de ser criança colado ao corpo de mulher enquanto corria estrada fora, empurrando com os punhos uma memória atrás da outra. Corria cada vez mais veloz como se a quase ausência de forças a colocasse numa outra realidade, ausente de pensamentos. As cidades que haviam percorrido de mãos entrelaçadas a esfumarem-se. Expectativas. As expectativas primeiro. O esquecimento depois. O processo. A ausência de um processo.

Ele voltava sempre que ela o havia esquecido. Os sentimentos borbulhavam dentro de si e ela corria para não o encontrar à chegada, perdida para dentro do seu silêncio angustiado. Há um silêncio desconcertante na morte. Essa ausência galopante que se aproxima mais rápido do que os passos da corrida, essa dor tenebrosa sem ferida aberta, saída de tudo quanto é corpo. Enfim, esse vazio ríspido de navalha afiada que um corpo em corrida pelo esquecimento sempre encontrará à chegada.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

quente

donnainrivaalmare.jpg

Cansei-me. E no dia em que me cansei transformei-me numa mulher sem alma. Não há nada pior que uma mulher sem alma. A carne engole-nos o coração, desprende-se algo para dentro, permite-nos parecer estripadoras de corpos.

Chove tremendamente, mas em mim está sol, há sol. Sento-me no teu colo e o som do mar entra porta dentro. Vejo-te dentro de mim sem precisar de olhos para o ver. Chove. Chove tremendamente, mas dentro de mim há um sol imenso. Está sempre quente na minha imaginação. Uso um vestido fresco e curto e vejo-o esvoaçar com a brisa do Verão, como se os momentos acontecessem em câmara lenta. Há felicidade cá dentro. Sei que há, porque me sinto quente ainda que chova insistentemente, ainda que saiba que é Inverno e a areia está molhada. Mas isso é cá dentro. Lá fora é outra coisa.

Lá fora gostar é um gemido. São os muitos gemidos, um atrás do outro, incessantemente. Gostar é o sangue a correr dentro do corpo, a parecer que nos vai saltar dos olhos. Perguntam-me se gosto deles e digo que sim. Vejo-lhes os olhos entusiasmados e o peito orgulhoso. A minha mentira que lhes parece verdade excita-me. Gostar é o descontrolo de não sabermos quem somos, é parecer muitas num só corpo, corpo dentro. A culpa é dele, é deles, é minha. Que importa o que nos transforma se em nada nos muda o que está dentro da pele? Suavemente. Um atrás do outro. O corpo, mais um corpo, um outro corpo, o amor em percentagens controladas e em tempo definido que não há tempo para amar e amar, dizem, fere.

Passo a mão pela relva acabada de cortar. Cheira a sal e uvas. Tenho um coração e uma mão na minha mão. Há sol. Na minha imaginação há sempre um sol e um tu. Lá fora é outra coisa.