quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

avó

Ele queria apenas tocar-lhe. Ele queria apenas sentir as marcas que o tempo lhe cravara na pele, conhecer as estórias que viviam naquela face. Mas receava que a reacção pudesse causar uma certa expressão de dor no rosto dela. Deixou-se então ficar sentado no chão, de pernas cruzadas e o olhar cravado naquele corpo sentado naquele pequeno banco de madeira, frente à larga fogueira. Ouvia-se apenas o crepitar da madeira enquanto o lume a consumia rapidamente, restando somente cinza e pó.

E ela mantinha o olhar virado para o lume, como se visse para além do fogo, como se houvesse um mundo preso naquela lareira que não queria abandonar. Depois, de quando a quando, virava o rosto para o corpo dele. Deixava cair um suspiro e abria um pequeno sorriso terno e cansado. As palavras custavam a deixar-lhe o corpo e, talvez por esse motivo, comunicava com o olhar.

Naquela terra, esquecida pelos dias, todos a conheciam como a ti'Amélia, a mulher dos olhos verdes que raramente deixava que o sol os beijasse. Era assim há sete anos. Há tantos anos quantos os anos que haviam passado desde que o companheiro partira. O mundo acreditou que ela partiria também. Mas a Amélia resistiu à certeza do mundo. Prometeu um dia, frente a um espelho sujo e baço, que só partiria quando não encontrasse prazer no bater do coração. Ele sabe que apesar das escassas e baixas palavras ela quer continuar a viver. Sabe que o quer, pelo menos até que o rio comece a secar lentamente, por altura do Verão, e a sua mãe traga um filho nos braços.

Talvez seja esse bebé quem ela vê sempre que olha a fogueira. Ou talvez seja o avô. Ela é tão feliz quando olha a fogueira. "Não partas avó. Quero-te para mim.", sussura ele contra as costas negras dela. Já não lhe conhece outra cor. Há sete anos que é assim. Depois do jantar ela senta naquele banco gasto e ele vem a correr desde casa, pelo monte abaixo, só para a poder observar. Às vezes ela conta-lhe estórias. Estórias de quando tinha os cabelos compridos e soltos e corria pelos campos, juntamente com os meninos e meninas que faz tempo partiram também.

Restam-lhe as memórias. Tantas memórias. Quase parecem organizadas em caixinhas de madeira. De quando a quando ela resolve abrir uma caixinha. Ele nem precisa pedir. Nunca pediu. Fica com os olhos azuis muito arregalados, fixados nela como se lhe fosse revelar o maior segredo do mundo. Por vezes fazia-lhe uma pergunta e acrescentava "Conta mais avó. Quero saber tudo sobre o teu mundo". E então ela contava-lhe mais uma estória, como a viagem que fizera com o avô a Lisboa, na lua de mel. "O melhor pedaço da minha vida", garantia-lhe ela e deixava verter uma lágrima. Era assim todos os dias. Não havia muito mais para fazer, na verdade.

Às 21h30 em ponto ele erguia o corpo, dava um abraço apertado na avó, um beijo no nariz e corria de volta a casa. Ele recordasse vividamente do último abraço que lhe deu. O neto havia nascido há mais de três meses e o frio regressara. As pedras da casa pareciam mais velhas com a chuva. Quando bateu 21h30 no relógio ele ergueu-se para a abraçar e desta vez ela abraçou-o também. Forte. Como se o tempo fosse esgotar-se ali. Como se o mundo que ela via na fogueira tivesse desaparecido. Ele apertou-a ainda com mais força. Com a cara contra o peito dela e os pequenos braços prendidos nos braços da avó. E deixou-se ficar. Assim. Largos minutos. Ela sussurrou-lhe "Gosto tanto de ti". Ele segredou-lhe ao ouvido "Tu és o meu mundo". Sorriu-lhe, deu-lhe um beijo no nariz e saiu, deixando-a frente à lareira. Ele sabia. Ninguém precisou de lhe dizer, porque ele sabia. Ela ia partir.

E largos anos volveram...

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

vida com sabor a sal

Quem o visse caminhar pelo areal naquela manhã de Inverno suspeitaria que era a tristeza quem o acompanhava. Diriam que era a tristeza quem guiava cada um dos seus passos, que era ela quem obrigava os olhos a manterem-se pregados ao areal e daí não se moverem a não ser para se cravarem nas ondas ou no horizonte. E, no entanto, a única coisa que ele procurava fazer era alimentar-se. Do cheiro a maresia, dos estalos de salitra na face, do roçar dos dedos na areia.

E, de repente, teletransportava-se até àquela que ainda hoje é a sua casa: o mar. Parece um menino. Com um sorriso rasgado, a pular no meio do areal, rente à queda da onda, a fugir à água gelada e a querer abraçá-la, de cabelos desalinhados pelo vento e calções gastos pelas quedas. Assim, em tronco nu. Como quando tinha cinco anos e disse à mãe que queria ser marinheiro de oceanos grandes.

Neste desejo os imensos navios fizeram apenas parte de noites agitadas sob o comando de sonhos em alto-mar. As vestes brancas jamais fizeram parte do seu guarda-roupa, mas parte desse destino havia de ser cumprido. A maioria das horas da sua vida entregou-as ao mar e consigo o seu corpo. Viu os dias rasgarem-se no fim da linha com as mãos envoltas em redes, os primeiros raios de luz a incidir no corpo dos peixes enquanto separava cada um deles. Haveria também de ver o céu encerrar-se sentado nessa mesma embarcação, de adormecer embalado pelas ondas, de acordar com tempestades que faziam o mar atirar a embarcação para um e outro lado vezes sem conta.

A palavra tragédia embarcou uma madrugada consigo, trazendo luto e dor a ranger em cada sílaba. Cinco pescadores enfrentaram o mar naquela noite fria de Outono, mas apenas um haveria de regressar cinco dias depois.Voltou com a morte carimbada no rosto e o medo cravado nos ossos. A estória deixou-a no mar e em terra entregou-a ao silêncio. Basta o sofrimento num mundo em que as palavras não fazem corpos ressuscitar.

A perda não o impediu, porém, de voltar às águas gélidas. Mas no tempo posterior não era apenas peixe que este homem procurava. Das mãos que lançavam as redes corria o desejo de resgatar a alma a um corpo que a perdera. O Homem alimenta-se de peixe. Ele alimenta-se de oceanos grandes.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

relógio de mãe

Naquele corpo há um tempo que ela sempre irá carregar. Independentemente da chuva que caia, da passagem do Inverno e sucessiva abertura de pétalas, independentemente das crises e guerras que possam fazer rachar o mundo. Há uma hora de uma relógio imaterial que continua o seu tic tac vigoroso, sucessivamente, sem pausas para o sono, para o descanso das pálpebras ou do batimento cardíaco.

Ela sabe exactamente o dia, o minuto se lho pedirem e quiça o segundo. Um coração de mãe não tem relógio, mas regista automaticamente cada vibração do seu outro eu. Sabe-o, porque na hora em que aconteceu o seu corpo paralisou enquanto os olhos fixavam a parede branca à sua frente. Havia um grito que ecoava preso contra as paredes do seu peito, que lhe rasgava as artérias e perfurava a pele. É uma dor sem nome, se dor poderemos chamar a tamanha angústia que lhe corroía o cérebro.

Quando lhe bateram à porta ela teve vontade de se manter presa à cadeira, de ignorar o som seco do punho na madeira. Era o medo, era a certeza. Erguida em tremuras e carregado o coração nas mãos abriu a porta de rosto lavado em lágrimas. Ela sabia-o e bastou-lhe a face do outro para perceber que estava certa: o seu filho havia morrido.

Jamais à palavra justiça se fez jus. Aquele que havia roubado a vida ao seu filho continuou a percorrer as ruas da aldeia como se a palavra morte não lhe provocasse qualquer peso nos ombros. Nunca foi apresentada uma justificação. O momento errado. A hora errada. O local errado. São estes os fios que ela carrega no corpo, um corpo que resistiu ao tempo, à lembrança, à dor, à perda.

Hoje, o tempo não é mero tempo. É a base onde se assentam cada um dos momentos tidos por detrás da respiração agora inexistente.

domingo, 5 de dezembro de 2010

máquina do tempo

Era madrugada. É a única indicação temporal que ele pode apontar para que o seu eu se localize, ainda que meio incerto, no recheio desta estória de amor. Estória de amor talvez seja um título demasiado pomposo, desajustado, talvez, mas é reconhecido que a consciência não tem soberania no que aos sentimentos diz respeito. Os dois campos - psico e emocional - presos num corpo só não se deixam cruzar, para evitar que os tecidos da alma sofram choques intensos contra as paredes do coração. Mas não nos percamos nos trilhos da filosofia. Importa aqui saber e deliciarmo-nos, sobretudo deliciarmo-nos, com as palavras que envolvem aquela paixão, manifestada num simples olhar durante uma despedida.

Ele viu-se forçado a não projectar qualquer emoção naquele acto de desunião. Na verdade, obrigou o seu cérebro a manter um sorriso constante, em certos casos a mostrar inclusivé os dentes desalinhados, por imposição dos anticorpos desenvolvidos em tempos remotos, em situações algo semelhantes. Mas ela pareceu paralisar enquanto segurava a mão dele e perscrutava os seus olhos. Ele continuava de sorriso aberto, enquanto sentia cada pedaço interior ser flagelado por mãos invisíveis. Seria o seu coração a desfazer-se, porventura. Porém, ali estava ele a exibir aquela falsa felicidade castradora e escrupulosa. Ninguém, para além dele estava convencido da sua ventura. Mas ele só o percebeu quando o sabor a sal lhe invadiu os lábios. Sim, eram lágrimas, em torrentes quase descontroladas, que manchavam a sua face.

Não existiram palavras - engano seu quando o referiu -, apenas aquele silêncio castrador colado ao vento. O silêncio e o abraço. É tudo o que recorda. O avião esperava na pista, de portas abertas, enquanto avisos ecoados pelas colunas de som recordavam que a porta de embarque fecharia a qualquer momento. A mensagem que os seus ouvidos não conseguiam fazer calar. Aquele aviso que, camufladamente, lhe recordava que ela tinha de partir. Não haveria um regresso, ele sabia-o.

Os braços dela começavam a desprender-se do seu corpo, sentia-o. Por momentos teve a impressão de que havia regressado à adolescência, àqueles dias de fim de Verão que lhe roubavam os amores nascidos nos areais, entre as ondas gélidas da costa Norte. Até que os braços se soltaram por completo e tudo pareceu, a seus olhos, mover-se numa espécie de câmara lenta. O corpo dela a recolher aquela mala, gasta pelas noites passadas na rua, o contraste com a roupa limpa que exibia, os beijos dos amigos, o beijo colado nos seus lábios, a sua inércia desajustada enquanto ela se afastava. E ele estupidamente preso numa epécia de bolha surreal, julgando que aquele momento não era mais do que um pesadelo.

Terá sido instinto. E juntemos-lhe um outro substantivo: impulso. Movido por um sentimento que até ao momento desconhecia correu na direcção dela. Correu, tendo a impressão de que se abria uma espécie de corredor à medida que o seu corpo acelerava o ritmo da corrida. Ele queria apenas voltar a sentir a pele quente dela contra a sua. Ele queria apenas os dedos dela entrelaçados nos seus. Ele queria apenas sentir a sua alma despida frente ao olhar dela. E, por isso, correu, como se a sua vida dependesse desse movimento feito naquela noite de nevoeiro trazido pelo Inverno.

A lembrança corre-lhe o pensamento a cada minuto do dia. É verdade que o seu corpo quase se perde entre os objectos que enchem a rua. Mas a verdade é que ele não está ali. Está preso àquele momento. Está preso àquele outro corpo.

sábado, 27 de novembro de 2010

corpo de cordas

Caminhava a cerca de cinquenta metros quando o som dos acordes penetrou o meu ambiente sonoro. Sabia exactamente que dedos faziam aquelas cordas vibrar, que corpo se encontrava alheado do mundo e fazia correr o sangue através da pauta musical.

Se à matéria fosse injectada vida, também aquela guitarra teria estórias para contar. Estórias envolvidas de excitação ainda a fervilhar entre as palavras, com o prazer a pulsar em cada momento e a ansiedade cosida ao corpo, a desprender-se em cada passo dado antes de entrar no palco. A sua voz descolava-se do silêncio apenas em alguns intervalos do reportório, para deixar a actuação entregue aos diálogos que se soltavam das cordas. Quase não sentia necessidade de aplausos. Era nos rostos paralisados num sorriso, onde as lágrimas banhavam os olhos, que encontrava a maior recompensa. A fama matemática, que faz dos números a satisfação do artista, em nada lhe interessava.

Ainda hoje permite que o seu talento seja transportado para outros dedos. Horas a fio, com a paciência a servir de base de trabalho, transmite cada um dos seus conhecimentos a quem os deseje carregar. E vários foram os nomes que se sentaram frente ao artista, sedentos de música. É também a única oportunidade que têm actualmente de assistir àquilo que ele produz musicalmente. Abandonou os palcos para se dedicar exclusivamente ao que diz ser o mais importante na sua vida, a liberdade. Desprendeu-se, assim, do receio de encontrar com o avançar da idade rostos insaciados entre o público.

A sua rua transformou-se num imenso palco. Há um disco humano em constante loop, fazendo da estrada uma imensa sala de concertos. Aqui já ninguém suporta o silêncio, nem o silêncio se consegue impor. Quem o irá substituir quando a morte o vier buscar?

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

fragmento de guerra

Costumava fumar lentamente. Sentava-se na paragem do autocarro, fizesse chuva ou sol, e ali ficava horas a deliciar-se com as expressões dos condutores que ali passassem. Cansado, porventura, dos rostos inexpressivos, mudou-se para o meio da rua. Agora, mais do que o erguer da mão gosta de puxar da palavra. Mas ninguém lhe dedica mais do que dez minutos de conversa. Temem que o seu diálogo termine nas suas lembranças.

A culpa não é dele. Não foi uma escolha. Foi uma ordem que lhe mudou a vida. Chegou estampada numa carta, de discurso perfeitamente organizado, feito quase na totalidade de palavras que ele desconhecia. Encontrou a carta nas mãos da esposa, quando numa tarde quente de Verão regressava do trabalho. Ela, de olhos cravados na folha branca, apenas conseguiu dizer "não vás". Ele não precisou, então, das palavras contidas naquela carta para perceber o pedido.

Partiu em 1961 para combater em Angola. Tinha o medo enterrado no peito, a perfurar-lhe cada parcela da sua masculinidade e, no entanto, exibia um vistoso sorriso de quem se orgulha de servir a sua pátria.

Uma bala fá-lo-ia regressar um ano depois. Mas ele não vinha só. Trazia os combates, os mortos, os gritos presos à pele, prontos a aí permancer enquanto a vida se prendesse a ele.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

homem silêncio

Aquele recanto pertence-lhe. Foi o tempo quem o ditou. Dia após dia, sem espaço para ausências, aquela cadeira é ocupada por aquele homem. Deixaram de se contar os anos ou as horas que ali permaneceu. Inicialmente limitava-se a saborear um café e a deliciar-se com um único cigarro. Nos dez minutos seguintes fixava um ponto e perdia-se num mundo que só ele era capaz de visualizar. Mas um dia, um daqueles dias que ninguém regista no calendário, ele fez daquele espaço o seu casulo. Era o primeiro cliente a sentir o cheiro torrado e quente do café acabado de fazer e o único a estar presente no fecho das contas. Não proferia nenhuma palavra para além das necessárias aos pedidos e, no entanto, todos sabiam que ele respirava palavras. Após uma leitura intensa dos vespertinos, abria uma espécie de dossier e enchia a mesa de folhas. Pequenas ilustrações a sépia aqui, palavras soltas por ali, folhas limpas e brancas ainda por rasurar, num lote estrategicamente disposto do seu lado esquerdo, e uma caneta, uma mesma caneta que se assemelha a uma amante.

Apelidaram-no de homem silêncio. Um corpo ausente que, à medida que se riscavam os meses no tempo, se transformava cada vez mais em matéria daquela mesa. A sua vida era um vácuo, uma incógnita aos olhos dos demais. Mas jamais alguém se atreveu questioná-lo. Não o conhecem porque as suas palavras são a sua imagem. O homem silêncio é, na verdade, um reconhecido escritor, mas nunca apresentou o seu rosto a par dos seus livros. Refugia-se num pseudónimo e esconde-se num local perdido no interior do mapa nacional, para onde se mudou contam-se já quinze anos. É o seu refúgio, uma forma de fintar a fama.

As palavras surgiram tarde na sua vida. Usou-as aos trinta anos como sua salvação, como único meio de expressão e, sobretudo, como escape da dor quando a morte lhe levou o amor. No dia em que a perdeu atirou as suas memórias e o que restava da sua vida para o interior de uma mala gasta e partiu. A fuga levou-o até uma ilha isolada, para um recomeço que ele visualizava como o fim, para meses de angústia e sofrimento, para um labirinto emocional onde se sentia encurralado. Foram as palavras quem o salvou. Foram as palavras  quem o despertou. Foram as palavras escritas sobre a morte e o amor que fizeram nascer o seu primeiro romance, que fizeram nascer o escritor.

A dor jamais o deixou, jamais o deixará. Ele sabe-o. Sabe que essa dor se cravou na pele, que o perfurou até ao interior dos seus ossos. Mas reconhece que essa mesma dor é o ingrediente principal das suas estórias, o motor do seu eu. Vive com ela, vive graças a ela.

Dez anos volveram desde que aterrara naquele pedaço de terra quando o decidiu abandonar. Foi de novo o amor que o levou a partir. Exactamente no momento em que percebeu que a paixão ia regressar aos seus dias, exactamente quando o seu coração voltou a bater, partiu para Portugal. A alteração geográfica não repercutiu qualquer mudança na sua vida. Só os cheiros, o clima e a paisagem se diferenciam. Perdeu a beleza do oceano, ganhou a magnitude das montanhas. As palavras permanecem. Continuam a surgir em torrentes incontroláveis, a encher páginas, a formar estórias, a serem alimento da alma de tantos. Ele vai permanecer naquele recanto. Ali vai continuar a dar a sua vida à literatura, a recusar dar o corpo ao amor. Aquele recanto pertence-lhe. Pertencer-lhe-á até ao dia em que a paixão o obrigue a uma fuga não planeada, mas obrigatória.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

amor sem título

Era Domingo. Corria uma leve brisa e tombavam das árvores as primeiras folhas de Outono. Em certas zonas daquela localidade sentia-se já o cheiro a lenha queimada a escapar pelas chaminés. Era dia de festa da Sra. da Assunção. As ruas estavam bordadas de papéis coloridos e pétalas de flores, que formavam imagens distintas ao longo do caminho. No interior das casas preparavam-se as melhores iguarias, enquanto sobre a cama aguardavam as melhores vestes, escolhidas especialmente para este dia. O ouro foi retirado das caixas, o cabelo arrumado num impecável penteado.

O povo ia encontrar-se numa mesa estrategicamente colocada no centro da aldeia e, portanto, os corações jovens estavam acelerados. Diziam os mais velhos que no dia da Sra. da Assunção o amor saía à rua para tocar os corações abertos à paixão. A Amélia ria sempre perante a afirmação, descrente de lendas sem conteúdo factual. Contudo, quando ele se sentou frente a ela naquela longa mesa, Amélia julgou que o seu conhecimento era inútil. Há leis impostas pelo amor às quais estamos condenados. Ela não percebeu no imediato o que estava a suceder com o seu corpo. Tinha o olhar preso àquele homem, como se a tivessem acorrentado, e o peito em sufoco. Havia uma vontade incontrolável no seu interior de o tocar, de comprovar a sua real existência. E, no entanto, sentia-se incapaz de movimentar qualquer um dos seus membros. Ele percebeu. Sorriu triunfante e estendeu-lhe a mão. "Sabia que te haveria de encontrar. Sou o Pedro", disse-lhe.

Foi no dia da Sra. da Assunção que Amélia conheceu Pedro. Foi no dia da Sra. da Assunção, volvidos 365 dias, que subiram ao altar. Esta é a estória de amor de Pedro e Amélia, uma estória na qual a barra cronológica pouco ou nenhum peso parece ter. Cinquenta anos volveram, mas as suas almas, mais do que os seus corpos, continuam inseparáveis.

Ele descobriu que tem Alzheimer. Nada mudou. Apenas o medo surgiu nos dias, batendo levemente nas suas costas sempre que olha Amélia. O seu maior receio é esquece-la, é perde-la na fuga das recordações, imposta pela doença. Ele deseja morrer, como forma de vencer as consequências da patologia, mas não o revela. Antes de partir pretende colocar num caderno o que a vida não deve apagar, para que Amélia saiba que o amor sai, de facto, à rua. Ele sabia que haveria de o encontrar. Ele sabia que haveria de encontrar o amor. Encontrou-o no corpo de Amélia.