quarta-feira, 29 de junho de 2011

perfeição imperfeita

A cadeira é fria, como lâmina que não corta mas se sente aguçada. A pele dela é vermelha. É quente. Quase sinto os dedos queimar quando os deixo escorregar pelo peito dela. É mais perigoso ainda do que o fogo de Inverno, esse capaz simplesmente de provocar conforto na pele e, sobretudo, no espírito. Ela tem o cheiro do vento que me entra nas narinas, carregado do aroma das tulipas, após ter atravessado o jardim que envolve a praça. Já não necessito da voz dela. Encontro-a através do calor que os seus poros emanam e que se entranham na minha pele, nas minhas mãos. Sei-a perto de mim não porque lhe toco, mas porque a sinto com a alma.

Era Sábado. Estávamos numa festa popular e perdemo-nos. Aprendi que não havia necessidade interna de me preocupar. Ninguém se perde totalmente a não ser que o deseje veementemente. Enquanto caminhava entre a multidão abriam-se alas, num acto já de si inconsciente. Alas que me faziam sentir único, especial, de um especial que não se anseia ser. Sabia que a preocupação era desnecessária, porque ela estaria no meio do corredor que surgia à minha frente. Jamais se colocou de lado, por isso nunca a soube perdida.

Ter nascido cego terá sido, porventura, um privilégio. A esperança dos outros de que um dia pudesse recuperar a visão assustava-me. Nunca sonhei abrir os olhos e ver a forma e cor dos objectos, do mundo, das pessoas. Sempre soube que nada poderia ser mais prazeroso do que o toque, a sensação perpassada para os meus dedos das texturas das coisas, da brandura da pele dela. Nada poderá suplantar o sorriso que me corre nas mãos quando lhe toco a face, o sabor, os cheiros e os sons que numa sintonia perfeita constroem o que me rodeia.

Não necessito dos olhos para ver. Aqueles que vêem, não vêem na realidade senão o que a realidade lhes mostra. Desconhecem que apenas vemos quando fechamos os olhos e sabemos que não estamos perdidos nem perdemos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

ausência

Pintaram as paredes de azul como o céu, para que não existissem muros que os separassem do exterior e plantaram um jardim de tulipas e árvores de floresta para esquecerem o mundo sempre que se deitavam sob a sombra dos seus longos ramos. Anos depois atiraram cordas em torno dos braços fortes do carvalho e fizeram-nas balançar uma e outra vez e mais uma vez, vezes das quais se perdeu a conta de tão gastas ficaram essas cordas, mas incapazes de deitar por terra o frágil corpo da criança que se fazia baloiçar.
As paredes perderam o azul para ganhar uma cor acastanhada, emaranhada de amarelo, com o azul a esconder-se entre as tonalidades, a desprender-se em pequenas lascas, a querer desaparecer. E com a cor toda a casa ganhou idade, maturidade, histórias coladas a cada um dos seus recantos, feitas de palavras que se soltavam dos lábios dela, dos sons que tomaram forma desprendidos da boca do bebé, agora homem. Como se tivesse peito, como se houvesse um coração algures, dentro da gaveta da cozinha, no armário do quarto ou quiçá debaixo dos lençóis.
Os brinquedos continuavam no grande cesto de verga encostado à parede da sala, com o carro de madeira comprado à beira-mar, naquela única viagem que haviam podido fazer no correr dos 17 anos em que se abrigaram sob aquele mesmo tecto. Os rostos continuavam petrificados em molduras que o pó se encarregou de cobrir, os desenhos de aguarelas começavam a ser lambidos pela humidade, pelo ar preso que parecia cortar as madeiras e fazer estalar os tacos do chão. Eles haviam partido.
Deixaram o passado perfeitamente desarrumado, dividindo os anos em parcelas deixadas sem acaso em cada uma das divisões da casa. Como se a mobília não necessitasse de sentir as mãos que delicadamente lhes fazem escorrer as gavetas, como se o colchão não precisasse de sentir o roçar suave daquela pele entre o seu tecido. Como se julgassem que a presença inconstante de um ser que lhes retira as teias lhe mantivesse a vida.
Quão enganados estão aqueles que partem acreditando que o que deixam é perene. A ausência cria mais rachas que uma presença intensa, a partida abre mais fendas que o bater das portas, a corrida entre o corredor e o quarto, a bola que bate insistentemente na parede. A casa deixou de respirar. Deixou de respirar porque o ar partiu naquele carro, dentro de cada uma daquelas caixas, no interior de cada um daqueles corpos que a habitou.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

pretérito imperfeito perfeito

Colocou os pés no solo do centro histórico e inspirou. Um cheiro a rosas, ainda a desabrochar, inundava o ar da cidade, contrastado com o repucho de água, que quase realistamente libertava o ar saturado do calor próprio de Agosto. Mulheres de guarda-chuva ocupavam os bancos de madeira dispostos em torno da pequena fonte, vigiadas pela imponente Sé, estrategicamente erguida no ponto mais alto da cidade.

A vida não tinha limites, não tinha fronteiras, não tinha uma cultura preestabelecida, não tinha um padrão social, um trilho demarcado. A vida era uma estrada sem sentido único, repleta de cruzamentos, chegadas e partidas. A vida era cheiros que recordavam lugares, lugares que despoletavam pessoas, pessoas que carregavam cheiros. A vida, a vida dela era assim. Vivências coladas à sola das sapatilhas, amores pastilha elástica, um mapa repleto de circunferências, um arquivo de histórias que a memória desconhecia já onde guardar.

São dias conjugados no pretérito imperfeito que se penduram no presente como dentes que se cravam na pele. Memórias envolvidas em saudade que o sorriso não esconde e a calçada reflecte. É ela, a sua velhice e uma aldeia escolhida para o sempre que lhe resta.