quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Maria ou simplesmente Mia


Não trazemos para as linhas das folhas as histórias daqueles que nos tocam. Não o fazemos por reconhecermos que os anos e momentos que as revestem nos infligem de impotência, por percebermos que somos carne e nada força quando o presente desses se transformou numa invontade, invida, intudo. E inventamos palavras porque na verdade nenhuma palavra descreve aquilo em que a vida delas se transformou. Foi isso, apenas isso, esse vazio arrebatador que nos afunila, que senti no momento em que voltei a ver a Maria.

A história da Maria, ou Mia como sempre carinhosamente lhe chamamos, há-de perder-se no tempo. Porque a história das mulheres comuns pouco ou nada interessa à História. Desvanecem-se nas bocas e no tempo e com elas acaba por desaparecer a personagem principal. Mas é a história das mulheres comuns que carrega dureza e é da história das mulheres comuns de que é feita a nossa história.

Dura na atitude, mole nos sentimentos, a Mia amou, desde que a minha memória a carrega, um homem que nunca lhe pertenceu mas que sempre caminhou imaginariamente a seu lado, apesar de casada com um outro homem que escondia a desilusão de o saber. Lembro-me de a ver pela casa, de a sentir como uma segunda mãe, de a saber nossa como foi dos cinco homens que se transformaram em filhos. Lembro-me dos domingos de correria matinal, de passo apressado para a missa, do sabor dos seus rissois   e dos beijos repenicados. Eu lembro-me. Ela não. Da Mia de outrora hoje não resta nada. A mercearia, a casa, o grupo coral e tudo o resto memórias que nem memórias são. Para a Mia a quem não resta nada, o tempo que sempre lhe pareceu demasiado curto hoje é longo e cheio de nada.

Havia passado muito tempo, anos porventura, desde que a havia visto. Não por falta de tempo. Não por distância. Mas por medo. Receei durante muito tempo o que o tempo lhe poderia ter causado. E quando decidi que era tempo, vê-la foi como deixar de ser. No momento em que lhe encontrei o olhar reconheci o que sempre soube, que não lhe resta nada a não ser a espera vazia de memórias, vazia de palavras, vazia de movimento. Uma não existência já. 

Podem retirar-nos muito do que construímos, das coisas que possuímos, as pessoas que amamos. Mas havemos de manter sempre as memórias daquela que é a nossa história. É esse património que deveria ficar obrigatoriamente connosco até ao dia em que não mais estivéssemos. Mas no caso da Maria as recordações perderam-se para dentro de si, para um desses labirintos desvendáveis.  Eu tenho esperança que ela seja das últimas a quem as memórias se escaparam para o desconhecido. É apenas uma esperança, porque esperança é nesta história a única coisa que me é permitida.