sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

estupro do eu

Era a noite quem ela mais temia. Não por recear a ausência de luz ou a repentina quietude que habitava os recantos daquela casa. Não. Era exactamente aquele momento em que a rua se rendia ao silêncio, em que o mundo parecia estagnar. Aquele momento que abria as portas ao medo. Entranhava-se no seu tronco como o frio do Inverno se entranha nos corpos. Perfura a roupa, infiltra-se nos poros, contamina todo o sangue, até que, por fim, se instala no coração, como mortífero vírus. O medo que a impede de fechar os olhos, de retirar o olhar da porta da entrada. O medo que lhe faz o coração saltar contra o peito, querendo quebrar cada um dos seus ossos.

Até que o silêncio é cortado pelo ranger frio da fechadura e pelos passos pesados daquele homem sobre os tacos soltos do corredor.

Os passos ainda lá ao fundo.
O bater descompassado do seu coração.
Os passos a aproximarem-se e o seu peito a ser esmagado.
Os passos a entrarem no quarto e o corpo a querer explodir.
Os passos frente à cama, acompanhados do cheiro a tabaco embebido em whisky, e o cérebro a gritar contra o crânio.
"FOGE".
A palavra a empurrar-se contra a pele, a palavra em órbita. A palavra sem acção.
O corpo dele sobre ela, a rasgar-lhe as vestes, a atirar-lhe palavrões para a face.
As mãos que lhe prendem os braços, que lhe causam nódoas negras nas coxas, nos peitos, no rosto.
O seu corpo em movimentos bruscos, dizendo não.
Os soluços sufocados. As lágrimas.
O seu corpo inerte, cansado, despojado sob aquele corpo duro e pesado a que chama "marido".
O tempo a doer em cada parcela de si.
O prazer, a satisfação que ele, vitoriosamente, faz ecoar pela cama, pelo quarto, pela casa.
As garras que se cravam no corpo dela, que a abrem, que a desfazem, que expandem as fendas no que lhe resta da alma, enquanto ele, sentado sobre os lençóis, se deleita com um cigarro, esboçando um largo sorriso.
Ela devastada onde aparentemente jamais alguém poderia tocar.
Ela menos mulher.
Ele sentindo-se mais homem.

Há corpos destroçados que admiravelmente conseguem parecer uma coisa só.

2 comentários:

  1. Muito bom!

    Adoraria te conhecer, virtualmente falando claro, já que estamos separadas por um oceano, rs.

    Uma mulher linda que escreve tão bem, adoraria ter a honra de falar.

    Meu msn é jcb_1978@hotmail.com ou gtalk juca.blog@gmail.com.

    Espero que você entre em contado

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