quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

palavra maligna

Trazia os exames de rotina dentro de um saco gasto de outros exames e esperava num corredor branco entre muitos outros pacientes. Nomes desconhecidos a serem projectados pelas colunas de som, queixas partilhadas, portas que se abriam e fechavam e aquela espera incessante. Tinha um compromisso importante. Não podia esperar. Mas a espera teimava em prolongar-se, arrastando os ponteiros do relógio.

O gabinete para onde o encaminharam ficava no fundo do corredor, mesmo de frente para a saída. No interior havia duas cadeiras visivelmente desconfortáveis, utensílios médicos espalhados por pequenas mesas e livros onde o pó se havia instalado. Ele distraía a atenção, enquanto o envelope que um outro médico lhe entregara com carimbo urgente era rasgado. Não era a primeira vez. Provavelmente teria de voltar a tomar os mesmos medicamentos, voltar a ter os mesmos cuidados com a alimentação, ouvir aquelas mesmas recomendações. Não era a primeira vez.

Não via de forma perceptível o rosto do médico. O sol incidia fortemente nas janelas por detrás da sua imponente cadeira, deformando-lhe os contornos. Subitamente, viu formarem-se pequenas rugas de preocupação em torno dos olhos do homem à sua frente. A testa franziu-se, o olhar focou. Enquanto ele, inexplicavelmente hirto, via a cabeça do médico percorrer por várias vezes a carta, do topo até à última linha. Depois olhou-o fixamente. Ele esperou.

As palavras surgiram primeiro pausadas. "Cancro" ... "Terminal" ... Depois em torrentes quase descontroladas. "Quimioterapia" ... "Não desista" ... "Radioterapia" ... Ele não percebia. Ele precisava apenas de mais medicamentos, de grelhados, de não exagerar  no sal. Que palavras eram aquelas? O corpo começava a perder os movimentos. O suor, a pele a estalar, o peito a abrir-se, as veias a esvairem-se, o cérebro a agitar-se, a tentar entender, a vasculhar cada memória, cada possibilidade de ver como uma mentira todo aquele momento.

"Cancro", a palavra ecoada vezes sem conta no ar. O medo a alastrar-se por cada uma das suas moléculas e os lábios do médico que não paravam de se mover. Que silêncio era aquele que o impedia de ouvir? Que angústia era aquela que lhe prendia a língua? Que palavras eram aquelas que lhe cortavam os membros? E aquele cheiro indecifrável a hospital que lhe retorcia o estômago.

Ele precisava sair daquela sala, correr todo aquele corredor até encontrar a saída. Tinha a morte a baloiçar frente ao olhar e, no entanto, os músculos não reagiam. "É, então assim. É assim o fim", pensou. Recostou-se na cadeira e durante um largo momento permitiu que o silêncio se apoderasse de si.

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