segunda-feira, 28 de março de 2011

boneca de coração farpado

Não é em mim que toca. É numa espécie de segunda pele, feita de cimento, que reveste cada parcela de mim. Cobre estes meus ossos, estas veias, estes órgãos, esta alma, impedindo que a sua saliva se misture com a minha, impedindo que os seus dedos deixem impressões digitais nos meus seios, nas minhas coxas, impedindo, sobretudo, que o meu ritmo cardíaco dispare, se deixe embalar pelos movimentos destes corpos, deitados em leiçóis velhos, por vezes despojados em estofos com cheiro a cigarro, colónia barata de quem pouca necessidade tem de parecer perfeito para me encontrar.

Lanço-me de novo à rua, exibindo sob as luzes foscas uma saia curta de toque macio, a blusa decotada de cor arrojada, estes longos cabelos libertos ao sabor da velocidade do vento. Passeio este corpo, que não o é, carregado em tacões de tamanho consideravelmente adaptado aos desejos masculinos.

As palavras que rompem das janelas dos carros deixaram de ser balas disparadas contra esta pele. Transformaram-se em vozes abafadas, lançando palavras rompidas pelo tempo. E transformaram o que resta de mim numa boneca indefinida, moldada a partir de esboços de perfeição, que perdeu o lugar na primeira prateleira.

Continuo à espera. À espera que o alcatrão deixe de ser o quarto, a sala, a casa, quando a cidade adormece. À espera que um dia este coração estagnado, gasto, receoso, sacuda o pó, erga a cabeça, faça bater as asas. À espera que esta espera não morra nas mãos da conformação.

Sim, sou prostituta. Sim, resignei-me. E então? Não acabamos todos por, em certo período das nossas vidas, nos resignar. Afinal, sou apenas mais uma. Na verdade, nada em mim é diferente.

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