segunda-feira, 11 de julho de 2011

chegada

Ruas, ruas, mais ruas, rostos que surgem para rapidamente desaparecer, risos, metades de palavras atropeladas pelo fim de outras, o som distante das ondas a embaterem contra a areia que rompe pela janela entreaberta e a música que parece querer rasgar as colunas do carro para se soltar no vento que choca no meu cabelo e faz esvoaçar a carta sentada a meu lado. Quilómetros e quilómetros em estradas ao acaso, uma busca desconcertante de um lugar que não descobri mas sei existir. Há uma sensação extasiante de paz quase a consumir-me. Um sentimento pacificador de plenitude a entranhar-se-me no peito.

O riso a ritmo claramente inocente ecoa-me pelo cérebro. Solta-se das minhas memórias para se espalhar em mim e se evidenciar orgulhosamente no sorriso que esboço inconscientemente. 7 de Maio. A palavra "papá" a sair-lhe da boca, a repetir-se vezes sem conta perante os meus aplausos. Preciso encontrar esse lugar. O tal lugar. É matéria espiritual. Ela é matéria espiritual. Não. É corpo. Foi corpo. Será sempre corpo. Está numa casa com jardim e piscina. Ela adora água. Está sentada no chão do quarto de paredes rosa, a brincar com os cabelos das bonecas. Talvez lhes esteja a fazer tranças. Certamente. Tranças. Largas. Em cabelos compridos e ondulados. Como os dela. Como o mar. Continua a sorrir. Ela está a sorrir. Sabe-me perto dela sem o estar, não sendo necessário estar para que ela me saiba presente.

Mais quilómetros. O sol a lamber o mar com a sua longa língua alaranjada exposta desde o horizonte até ao areal. Costumávamos fazer castelos de areia molhada e pesada, a colar nas suas pernas, a envolver-se nas pontas dos seus cabelos.

Estou mais próximo. Sinto que estou mais próximo. Sei que estou mais próximo. A saliva abunda-me na boca, entre os pedaços de coração que se entranham nas glândulas e me fazem remexer o estômago. Estou mais próximo. Ouço-a rir. Cada vez mais alto. Como no dia em que se olhou ao espelho e julgou-se outra. A cama estava vazia quando a fui rever. Os lençóis puxados para trás, a almofada que ganhara a forma do seu crânio, o peluche abandonado contra as traves de madeira. Levaram-na. Não. Ela está na sala a dar os primeiros passos agarrada aos móveis como se fossem mãos. Estou mais próximo. Sim. Muito próximo. O cano do revólver contra a minha espinha perdeu a frieza. Começa já a penetrar a minha carne. A bala começa a desejar fortemente saborear a minha massa encefálica, penetrar as minhas memórias e aí repousar. Sim. Os meus dedos querem tocar o gatilho. Ela continua a sorrir. Sabe que estou próximo. "O papá está a chegar, filha." Já sinto o cheiro dos cabelos dela nas minhas narinas. Sorrio. É aqui. Sim, é este o lugar. O vento dá lugar à brisa. O sol é engolido pelo mar. Os pés tocam a areia. As ondas rebolam praia fora. Sim. É aqui. É esta a hora. Pego no revólver. Sorrio. Coloco o polegar no gatilho e o cano contra o crânio. Cheira a mar. Sorrio largamente. "Querida, o papá chegou." Vejo-a abrir os braços. Primo o gatilho.

2 comentários:

  1. Arrepiante mas brilhante, miss Paula Allen Poe!?

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  2. [sorriso grandalhão deste lado mr Carlos. Allen Poe = suspiro. tão grandioso. tão grande privilégio :)]

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