terça-feira, 14 de junho de 2011

ausência

Pintaram as paredes de azul como o céu, para que não existissem muros que os separassem do exterior e plantaram um jardim de tulipas e árvores de floresta para esquecerem o mundo sempre que se deitavam sob a sombra dos seus longos ramos. Anos depois atiraram cordas em torno dos braços fortes do carvalho e fizeram-nas balançar uma e outra vez e mais uma vez, vezes das quais se perdeu a conta de tão gastas ficaram essas cordas, mas incapazes de deitar por terra o frágil corpo da criança que se fazia baloiçar.
As paredes perderam o azul para ganhar uma cor acastanhada, emaranhada de amarelo, com o azul a esconder-se entre as tonalidades, a desprender-se em pequenas lascas, a querer desaparecer. E com a cor toda a casa ganhou idade, maturidade, histórias coladas a cada um dos seus recantos, feitas de palavras que se soltavam dos lábios dela, dos sons que tomaram forma desprendidos da boca do bebé, agora homem. Como se tivesse peito, como se houvesse um coração algures, dentro da gaveta da cozinha, no armário do quarto ou quiçá debaixo dos lençóis.
Os brinquedos continuavam no grande cesto de verga encostado à parede da sala, com o carro de madeira comprado à beira-mar, naquela única viagem que haviam podido fazer no correr dos 17 anos em que se abrigaram sob aquele mesmo tecto. Os rostos continuavam petrificados em molduras que o pó se encarregou de cobrir, os desenhos de aguarelas começavam a ser lambidos pela humidade, pelo ar preso que parecia cortar as madeiras e fazer estalar os tacos do chão. Eles haviam partido.
Deixaram o passado perfeitamente desarrumado, dividindo os anos em parcelas deixadas sem acaso em cada uma das divisões da casa. Como se a mobília não necessitasse de sentir as mãos que delicadamente lhes fazem escorrer as gavetas, como se o colchão não precisasse de sentir o roçar suave daquela pele entre o seu tecido. Como se julgassem que a presença inconstante de um ser que lhes retira as teias lhe mantivesse a vida.
Quão enganados estão aqueles que partem acreditando que o que deixam é perene. A ausência cria mais rachas que uma presença intensa, a partida abre mais fendas que o bater das portas, a corrida entre o corredor e o quarto, a bola que bate insistentemente na parede. A casa deixou de respirar. Deixou de respirar porque o ar partiu naquele carro, dentro de cada uma daquelas caixas, no interior de cada um daqueles corpos que a habitou.

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