A cadeira é fria, como lâmina que não corta mas se sente aguçada. A pele dela é vermelha. É quente. Quase sinto os dedos queimar quando os deixo escorregar pelo peito dela. É mais perigoso ainda do que o fogo de Inverno, esse capaz simplesmente de provocar conforto na pele e, sobretudo, no espírito. Ela tem o cheiro do vento que me entra nas narinas, carregado do aroma das tulipas, após ter atravessado o jardim que envolve a praça. Já não necessito da voz dela. Encontro-a através do calor que os seus poros emanam e que se entranham na minha pele, nas minhas mãos. Sei-a perto de mim não porque lhe toco, mas porque a sinto com a alma.
Era Sábado. Estávamos numa festa popular e perdemo-nos. Aprendi que não havia necessidade interna de me preocupar. Ninguém se perde totalmente a não ser que o deseje veementemente. Enquanto caminhava entre a multidão abriam-se alas, num acto já de si inconsciente. Alas que me faziam sentir único, especial, de um especial que não se anseia ser. Sabia que a preocupação era desnecessária, porque ela estaria no meio do corredor que surgia à minha frente. Jamais se colocou de lado, por isso nunca a soube perdida.
Ter nascido cego terá sido, porventura, um privilégio. A esperança dos outros de que um dia pudesse recuperar a visão assustava-me. Nunca sonhei abrir os olhos e ver a forma e cor dos objectos, do mundo, das pessoas. Sempre soube que nada poderia ser mais prazeroso do que o toque, a sensação perpassada para os meus dedos das texturas das coisas, da brandura da pele dela. Nada poderá suplantar o sorriso que me corre nas mãos quando lhe toco a face, o sabor, os cheiros e os sons que numa sintonia perfeita constroem o que me rodeia.
Não necessito dos olhos para ver. Aqueles que vêem, não vêem na realidade senão o que a realidade lhes mostra. Desconhecem que apenas vemos quando fechamos os olhos e sabemos que não estamos perdidos nem perdemos.
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