segunda-feira, 11 de março de 2013

carta


Não te admires por ter fugido. Isso pertencia a ti e não a mim, é certo. Está-te nos genes surpreender-me com desfechos inesperados e inoportunos que me façam desejar o suicídio ao invés da dor de te perder vezes sem conta. És um cabrão, sabes. Talvez seja por isso que te amo. Não. Talvez não. É exactamente por isso que te amo. Soube-o no exacto momento em que te vi e foi precisamente isso que fez com que me atirasse sem paraquedas contra ti. Adoro cabrões por saber que trazem em si o amor explosivo, mesmo sabendo que são uma partida certa.

Nunca te soube meu. Quando achava que o eras mostravas-me logo que não. Raios. Acordar todos os dias com essa incerteza a encher-me o peito, essa incerteza de não te saber meu, esse receio de que a qualquer minuto do dia desaparecesses por completo quase me matava. E, no entanto, nunca me senti tão viva. Nunca o coração me pareceu tão acordado nem os sentimentos tão despertos. Por isso tive de te fugir. Antes que fosse tarde demais.

Cheiro a ti, sabes. Tenho a impressão de que ficaste impregnado nas minhas mãos, de tanto te ter tocado, pela forma como te abraçava contra mim para que não partisses. Raios, o teu cheiro deixa-me louca. Não deves entender tudo isto. Quiçá entendas. Não me importa se entendes ou não. Na verdade, importa-me. Queria ficar-te colada na pele. Queria que todo este eu, o meu cheiro, os meus cabelos ficassem nesse quarto, que jamais desaparecessem, que inundassem o espaço de cada vez que colocasses uma outra mulher sobre esses lençóis onde fomos. Sei que me amas. Amas profundamente, mas tens medo de me amar. Não deverias ter medo. Eu precisava que não tivesses medo para não ter de fugir de ti. Mas é tarde demais.

quarta-feira, 6 de março de 2013

ponto final


Na vida dela havia apenas esquecimento. Empurrava uma memória atrás da outra para um saco sem fundo como se se prendesse num baloiço e se deixasse empurrar fortemente, esticando os pés contra o céu e a cabeça a roçar a areia. Esse desejo de ser criança colado ao corpo de mulher enquanto corria estrada fora, empurrando com os punhos uma memória atrás da outra. Corria cada vez mais veloz como se a quase ausência de forças a colocasse numa outra realidade, ausente de pensamentos. As cidades que haviam percorrido de mãos entrelaçadas a esfumarem-se. Expectativas. As expectativas primeiro. O esquecimento depois. O processo. A ausência de um processo.

Ele voltava sempre que ela o havia esquecido. Os sentimentos borbulhavam dentro de si e ela corria para não o encontrar à chegada, perdida para dentro do seu silêncio angustiado. Há um silêncio desconcertante na morte. Essa ausência galopante que se aproxima mais rápido do que os passos da corrida, essa dor tenebrosa sem ferida aberta, saída de tudo quanto é corpo. Enfim, esse vazio ríspido de navalha afiada que um corpo em corrida pelo esquecimento sempre encontrará à chegada.