Não trazemos para as linhas das folhas as histórias daqueles
que nos tocam. Não o fazemos por reconhecermos que os anos e momentos que as
revestem nos infligem de impotência, por percebermos que somos carne e nada
força quando o presente desses se transformou numa invontade, invida, intudo. E
inventamos palavras porque na verdade nenhuma palavra descreve aquilo em que a
vida delas se transformou. Foi isso, apenas isso, esse vazio arrebatador que
nos afunila, que senti no momento em que voltei a ver a Maria.
A história da Maria, ou Mia como sempre carinhosamente lhe
chamamos, há-de perder-se no tempo. Porque a história das mulheres comuns pouco
ou nada interessa à História. Desvanecem-se nas bocas e no tempo e com elas
acaba por desaparecer a personagem principal. Mas é a história das mulheres
comuns que carrega dureza e é da história das mulheres comuns de que é feita a
nossa história.
Dura na atitude, mole nos sentimentos, a Mia amou, desde que
a minha memória a carrega, um homem que nunca lhe pertenceu mas que sempre
caminhou imaginariamente a seu lado, apesar de casada com um outro homem que
escondia a desilusão de o saber. Lembro-me de a ver pela casa, de a sentir como
uma segunda mãe, de a saber nossa como foi dos cinco homens que se
transformaram em filhos. Lembro-me dos domingos de correria matinal, de passo apressado para a missa, do sabor dos seus rissois e dos beijos repenicados. Eu lembro-me. Ela não. Da Mia de outrora hoje não resta nada. A mercearia, a
casa, o grupo coral e tudo o resto memórias que nem memórias são. Para a Mia a
quem não resta nada, o tempo que sempre lhe pareceu demasiado curto hoje é
longo e cheio de nada.
Havia passado muito tempo, anos porventura, desde que a
havia visto. Não por falta de tempo. Não por distância. Mas por medo. Receei
durante muito tempo o que o tempo lhe poderia ter causado. E quando decidi que
era tempo, vê-la foi como deixar de ser. No momento em que lhe encontrei o
olhar reconheci o que sempre soube, que não lhe resta nada a não ser a espera vazia
de memórias, vazia de palavras, vazia de movimento. Uma não existência já.
Podem retirar-nos muito do que construímos, das coisas que possuímos, as pessoas que amamos. Mas havemos de manter sempre as memórias daquela que é a nossa história. É esse património que deveria ficar obrigatoriamente connosco até ao dia em que não mais estivéssemos. Mas no caso da Maria as recordações perderam-se para dentro de si, para um desses labirintos desvendáveis. Eu tenho esperança que ela seja das últimas a quem as memórias se escaparam para o desconhecido. É apenas uma esperança, porque esperança é nesta história a única coisa que me é permitida.
Podem retirar-nos muito do que construímos, das coisas que possuímos, as pessoas que amamos. Mas havemos de manter sempre as memórias daquela que é a nossa história. É esse património que deveria ficar obrigatoriamente connosco até ao dia em que não mais estivéssemos. Mas no caso da Maria as recordações perderam-se para dentro de si, para um desses labirintos desvendáveis. Eu tenho esperança que ela seja das últimas a quem as memórias se escaparam para o desconhecido. É apenas uma esperança, porque esperança é nesta história a única coisa que me é permitida.
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