Dobrava a esquina e enfiava a manga do casaco rompido no braço esquerdo quando a viu. Olhou-a de relance enquanto ela continuava o percurso numa espécie de câmara lenta. As pernas continuaram em frente, inconscientemente tomando um passo menos veloz, à medida que os olhos, parte autónoma do corpo, ficaram cravados nela. A vontade de prosseguir a querer fazer-se ouvir e o peito a calá-la, desejando manter os pés colados à calçada da baixa.
Permaneceu o olhar, mais e mais profundo, de olhos embrulhados em rugas, petrificados perante a delizadeza do andar, o sorriso permanentemente arregaçado na face de um todo quase excessivamente feminino. Aquele carácter de mulher a saltar-lhe dos poros, transformando-o em simples pedestal de carne e osso. Ele ali, como um cão, dois passos atrás snifando o odor extravasado da pele dela, apoderado por aquele desejo que roça as paredes e se arrasta pelo chão.
Quanta ânsia de poder ter o que se não pode ter, de tocar o que antes de lhe tocarmos já se cravou no nosso querer. As palavras atravessavam-se no seu inconsciente, atropelavam-se, embatiam em momentos fantasiados ao longo dos muitos dias em que atravessou aquela mesma rua, àquela mesma hora simples e puramente para a ver passar. Mas impunha-se a barreira de um amor proibido, espelhado naquele anel de ouro que ela carregava. Prosseguia, porém, motivado pelo anseio, pela simples aspiração de saber-se presente nos olhos dela. Imaginava-a a entrar no comboio, a desprender o olhar do corredor e a encontrá-lo do outro lado do vidro com um olá desejoso de ser disparado da língua.
No entanto, dia após dia, o comboio iniciava a marcha sem qualquer cruzamento de olhares, sem a descoberta daquele outro. Escapava-lhe consciente e prepositadamente o fundamento presente naquela sua atitude de voyeur. Ela mulher casada, ele vítima de uma louca paixão platónica. Mas satisfazia-lhe a mera observação de um ser que sendo desconhecido se manteria enclausurado na sua excelência. O seu amor jamais seria beliscado pela desilusão, pelo logro da expectativa e manter-se-ia eternamente no cume da perfeição. Um passado que desenvolveu um coração em ruínas permitia-lhe reconhecer que, por hora, vê-la poderia ser mais prazeroso do que tê-la.