segunda-feira, 16 de maio de 2011

utopia

Dobrava a esquina e enfiava a manga do casaco rompido no braço esquerdo quando a viu. Olhou-a de relance enquanto ela continuava o percurso numa espécie de câmara lenta. As pernas continuaram em frente, inconscientemente tomando um passo menos veloz, à medida que os olhos, parte autónoma do corpo, ficaram cravados nela. A vontade de prosseguir a querer fazer-se ouvir e o peito a calá-la, desejando manter os pés colados à calçada da baixa.

Permaneceu o olhar, mais e mais profundo, de olhos embrulhados em rugas, petrificados perante a delizadeza do andar, o sorriso permanentemente arregaçado na face de um todo quase excessivamente feminino. Aquele carácter de mulher a saltar-lhe dos poros, transformando-o em simples pedestal de carne e osso. Ele ali, como um cão, dois passos atrás snifando o odor extravasado da pele dela, apoderado por aquele desejo que roça as paredes e se arrasta pelo chão.

Quanta ânsia de poder ter o que se não pode ter, de tocar o que antes de lhe tocarmos já se cravou no nosso querer. As palavras atravessavam-se no seu inconsciente, atropelavam-se, embatiam em momentos fantasiados ao longo dos muitos dias em que atravessou aquela mesma rua, àquela mesma hora simples e puramente para a ver passar. Mas impunha-se a barreira de um amor proibido, espelhado naquele anel de ouro que ela carregava. Prosseguia, porém, motivado pelo anseio, pela simples aspiração de saber-se presente nos olhos dela. Imaginava-a a entrar no comboio, a desprender o olhar do corredor e a encontrá-lo do outro lado do vidro com um olá desejoso de ser disparado da língua.

No entanto, dia após dia, o comboio iniciava a marcha sem qualquer cruzamento de olhares, sem a descoberta daquele outro. Escapava-lhe consciente e prepositadamente o fundamento presente naquela sua atitude de voyeur. Ela mulher casada, ele vítima de uma louca paixão platónica. Mas satisfazia-lhe a mera observação de um ser que sendo desconhecido se manteria enclausurado na sua excelência. O seu amor jamais seria beliscado pela desilusão, pelo logro da expectativa e manter-se-ia eternamente no cume da perfeição. Um passado que desenvolveu um coração em ruínas permitia-lhe reconhecer que, por hora, vê-la poderia ser mais prazeroso do que tê-la.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

ferro de carne

Ela, moldada de perseverança, tecida de uma resistência suave, quase calada, permaneceu em terras alinhavadas de estereótipos tradicionais esgotados.

Encerrou o corpo na casa caiada de amargura e sonho. O pêndulo do relógio de cucu a baloiçar para lá e depois para o outro lado, demorando o tempo que um segundo deve demorar. Retratos a preto e branco, outros a sépia, espalhados pelas paredes gastas, sobre os móveis rompidos. A chuva que caía no exterior fazia com que as paredes parecessem toalhas molhadas a impedir o ar de rasgar o pano e se espalhar pelas divisões. Apenas a antiga televisão vestida de renda habitava a casa.

Do interior olhava aquelas outras mulheres, petrificadas nos seus sorrisos inquebráveis de miseráveis casamentos, revestidas de um sentimento de condenação que chegava a transbordar dos olhos. Enquanto ela, diminuída pela sua coragem, saboreava a maledicência amarga do divórcio, sabendo, contudo, que transgredir bloqueios sociais lhe deu a força necessária para os anos exigidos pelo tempo.

Mas viver a par do silêncio injectou-a de dureza, enterrou-lhe as palavras, tornou-a ferro feito de carne. A delicadeza do toque, essa, ficou retida algures entre uma memória do passado e um desejo no presente.